Vamos ouvir um pouco do que algumas comunidades Guarani tem a dizer? Clique em um dos círculos abaixo, e edite vídeos através de suas narrativas!

Rede
Selecione uma temática

Instruções

Clique na aba Rede no campo superior esquerdo. Você observou os CÍRCULOS que estão ligados através de linhas, em uma REDE? Experimente clicar em uma delas… clicou? Pois bem, você deve ter percebido que círculos menores surgirão ao redor do CÍRCULO clicado: estes são os MINI-CÍRCULOS. Também deve ter percebido que existem quatro cores nos CÍRCULOS. Isto ocorre porque os círculos estão divididos em três temas, e as cores representam estes temas:

. A cor marrom está relacionada ao tema Territorialidade Guarani.

. A cor amarela está relacionada ao tema Artesanato Guarani.

. A cor avermelhada está relacionada ao tema Educação Guarani.

Cada CÍRCULO contém uma atividade de elaboração de vídeo, denominadas de OBSERVE, OUÇA E ELABORE. Estas atividades estão relacionadas aos três temas, dependendo da cor do CÍRCULO do OBSERVE, OUÇA E ELABORE selecionado.

Existem também as esferas verdes. Elas correspondem a atividades de edição e reflexão do(s) vídeo(s) que você já elaborou no(s) OBSERVE, OUÇA E ELABORE. Estes círculos verdes são denominados de INVENTANDO E EDITANDO.

Este passo a passo explicará como você realizará as atividades de edição de vídeo, utilizando as fontes que estão nos MINI-CÍRCULOS desta rede, além de responder a algumas dúvidas que poderão surgir ao longo da atividade. Ao elaborar seu vídeo, algumas perguntas podem surgir:

. Como utilizar as fontes para elaborar o vídeo?

. Como baixar as fontes em seu computador?

. Como utilizar as fontes baixadas para elaborar um vídeo?

. Como mostrar o vídeo para o(a) professor(a) depois de pronto?

Acompanhando o passo a passo, você poderá descobrir como realizar este processo.

Vamos lá! Quem sabe, você não se descobre um(a) cineasta em potencial! Para começarmos, clique nas Dúvidas, justamente para irmos esclarecendo, e lhe passarmos algumas dicas para te ajudar a elaborar um belo vídeo!

Dúvidas

Bom trabalho! Que o(s) seu(s) vídeo(s) lhe conduzam para um Guata Porã (belo caminhar), através do respeito ao Nhandereko (forma de viver Guarani Mbya), Mbya Reko (modo de ser Guarani Mbya), e à Tekoá (lugares onde os povos Guarani vivem seu modo de ser)!

A PRODUÇÃO ARTESANAL GUARANI MBYA

Na Tekoá Koenju (Aldeia Alvorecer), a comunidade guarani mbya vive intensamente suas percepções religiosas. Um dia, um raio caiu em uma árvore, entre a mata.

Os rezadores trataram de interpretar se havia sido um espírito bom ou ruim que atingiu a árvore. O Karaí Tataendi Solano, teve um sonho na noite em que o raio caiu na tekoá, e atingiu a árvore. No sonho, o Nhanderú lhe pediu para que construísse uma Opy (Casa de Reza). Conduzidos pelas lideranças espirituais, a comunidade guarani começou a coletar madeiras para iniciar a construção da Opy. Pauliciana, que era Kunhã-Karaí (liderança espiritual), quis fazer colares para os homens, através da madeira da árvore atingida pelo raio. Ela revelou isso calmamente, durante o cozimento de algum alimento.

 

A madeira da árvore que foi atingida pelo raio, passou a ter ligação com os deuses, pois foi Tupã que se manifestou, mandando um sinal para os guarani. As Kunhã Karaí são as lideranças espirituais femininas, anciãs experientes responsáveis por manter o contato com os deuses e interpretar suas mensagens, através das rezas, da interpretação dos sonhos, e dos acontecimentos cotidianos. Por consequência, são responsáveis pela proteção espiritual da aldeia, precisando realizar as atividades necessárias para isso. Por isso Pauliciana quis um pedaço da madeira, para confeccionar artesanatos e proteger a aldeia. Os artesanatos produzidos pelos povos guarani mbya estão relacionados à cosmologia destes povos, de diversas maneiras: através dos seus usos, dos significados, e do próprio processo de produção, dependendo do tipo de artesanato. Mas o que são os artesanatos guarani?

A CAMINHADA GUARANI MBYA EM SEUS TERRITÓRIOS

As tekoá são lugares permeados de espiritualidade, onde as lideranças espirituais exercem o importante papel de guiar as pessoas da aldeia de acordo com o belo caminhar Guarani Mbya, através da busca constante da purificação, que existe no mbya reko (modo de ser Guarani Mbya). Alcançar a morada sagrada dos nhanderu mirim é a meta dos que vivem o nhandereko. Mas, conforme ensinam as lideranças, é preciso de condições específicas para viver o Mbya reko

[…] Quando se fala do território Guarani, estamos falando de espaço, tempo, convivência, terra, animais, plantas medicinais, deuses e da crença, ou melhor o nosso yvy rupa (território ou berço da terra), tudo junto. O filho de NHANDERU o NHAMANDU que criou o povo Guarani que deu o ARANDUA (sabedoria e conhecimento) para que pudesse até hoje praticar o NHANDE REKO (nosso sistema), desde o significado de ocupação territorial de ter o respeito e manejo sobre a natureza. […] (MOREIRA, 2015, p. 14).

Já fazem alguns anos que o Guarani Mbya Ariel Ortega (Kuaraê Poty) é cacique da Tekoá Koenju. Os caciques também são muito importantes nas aldeias, pois eles são as lideranças políticas, que representam os povos Guarani nos conflitos, e na luta pelo respeito aos direitos indígenas. Eles são como “diplomatas”: eles representam as necessidades das comunidades guarani, diante das sociedades não indígenas, que vivem culturas diferentes, lutando pelo direito às Terras Indígenas, que vem sendo invadida pelos não índios a séculos. Entretanto, as lideranças políticas e espirituais das aldeias, precisam fazer os juruá (não indígenas) entenderem que as tekoá só podem existir se houver ambiente com condições para os Guarani viverem de acordo com o mbya reko. É o caso da Mata São Lourenço, que os Guarani Mbya que vivem em São Miguel das Missões (RS) vem reivindicando a tempo. O cacique Ariel participa de movimentos indígenas Guarani, que atuam na resistência e luta pela demarcação de suas terras. Veja um trecho da carta escrita em 2014, em um dos encontros das comunidades guarani do Rio Grande do Sul, sobre a Mata São Lourenço, endereçada a Fundação Nacional do Índio (FUNAI), e aos governos não indígenas brasileiros:

[…] 9) Mata São Lorenço e Esquina Ezequiel: A Mata São Lourenço é uma das poucas áreas com matas boas na região das missões. A FUNAI deve encaminhar um GT, antes que essa mata seja terminada para dar lugar a monocultura de soja. A Esquina Ezequiel, nas margens do Arroio Piratini, deve estar junto com o GT para a Mata São Lourenço, pois também é uma área importante para a formação de aldeia na região das Missões. […]

Lideranças das Comunidades Guarani do RS. Porto Alegre, 30 de abril de 2014. Disponível em: http://www.cimi.org.br/site/pt-br/?system=news&action=read&id=7487.

O ambiente encontrado na Mata São Lourenço é de grande importância para os Guarani mbya que vivem na região. Ariel, junto com sua esposa, Patrícia, os Guarani Mbya da região, e a ONG Vídeo nas Aldeias, produziram um filme, chamado Desterro Guarani (2011), sobre a situação da luta pela demarcação, e o desterro sofrido pelos Guarani ao longo do contato com os juruá (não indígenas). No filme, Ariel mostra a região da Mata São Lourenço, e explica, junto com o Guarani Mbya Mariano, sua importância para os povos Guarani.

 

Percebeu como Mariano ensina sobre a mata, para a criança Guarani Mbya que caminha com eles? Na cultura Guarani Mbya, as pessoas mais velhas são como livros e história, realizando ensinamentos, através da oralidade, narrando histórias sobre os deuses, espíritos, e as práticas da cultura Guarani Mbya. Por isso, as pessoas mais velhas são muito ouvidas, durante os encontros dos povos Guarani, para lutar pela demarcação de suas terras, pois ensinam o que é necessário para formar a tekoá (espaço onde os Guarani Mbya vivem sem modo de ser) …

Através das rezas, da meditação, dos cantos, os Guarani Mbya vivem seu modo de ser nas tekoá, organizando sua sociedade pautados nas condições ambientais necessárias para manter o nhandereko (sistema cultura Guarani). Mas que condições são estas? Quais são as terras indígenas já demarcadas para os povos Guarani Mbya, e quais as terras em fase de demarcação? Como os Guarani Mbya lutam pela demarcação de suas terras? Onde vivem os povos Guarani Mbya?

A FORMAÇÃO DA PESSOA GUARANI MBYA

A forma como os povos Guarani Mbya, adquire um sentido relacionado com a sua espiritualidade. Os motivos pelos quais as pessoas aprendem algo nas comunidades Guarani Mbya,, está vinculado ao fortalecimento de seu espírito, através da vivência do mbya reko (modo de ser Guarani Mbya). As atividades nas aldeias são desenvolvidas e divididas coletivamente, o que possibilita que os Guarani aprendam observando aqueles que são mais experientes. O conhecimento não é algo que acontece de fora para dentro, mas sim uma consequência das atividades executadas com naturalidade, através das brincadeiras, danças, cantos, e das histórias contadas pelos mais velhos.

Na Tekoá Koenjú, os irmãos Neneco e Palermo costumam aprender muito através de suas brincadeiras, que envolvem exercícios físicos, narração de histórias, e atividades que os adultos e mais velhos da aldeia lhes designam, como, por exemplo, ir buscar lenha na floresta.

Por muito tempo, as aldeias Guarani não possuíam escolas indígenas. O espaço escolar era utilizado basicamente para tentar impedir aos povos indígenas de viver segundo seus costumes e tradições, tentando-se criar a ideia de que os saberes juruá seriam superiores aos dos povos indígenas, para buscar assim, exterminar os povos indígenas através de sua assimilação cultural. Assim, os pais e avós de Neneco foram educados de outras formas.

Hoje, os Guarani Mbya procuram elaborar uma escola diferenciada, para que as relações escolares fortaleçam a afirmação cultural dos estudantes indígenas. Porém, as amarras são muitas, e muitas vezes as escolas não encontram apoio das Secretarias de Educação, para formar uma prática autônoma, que respeite o modo de vida Guarani. Mas como os povos Guarani Mbya educam as pessoas? Se a formação de escolas é algo recente para os Guarani, como eles vêm ensinando suas crianças e todos aqueles que vivem o modo de ser Guarani Mbya? Será que só existe uma forma de escola? Uma forma de educação?

Vamos fazer uma experiência? Gostaria que você ouvisse uma pequena história, sobre a tarde de verão de algumas pessoas no centro de Joinville. Seria interessante fecharmos os olhos, para podermos sentir o que essa história pode nos ensinar. Você irá conhecer, agora, um pouco da cultura de um povo muito estranho que vive entre nós: os Sonacirema. É interessante ouvir a história até o fim, com bastante atenção… boa história para você!

Um conto Guarani numa tarde de sexta…

Até onde a ciência pode provar, ninguém consegue prever o futuro. Mas em uma cidade como Joinville, quando se espera uma tarde de verão, daquelas que parece estarmos em uma panela de pressão, os joinvilenses, com a experiência dos que vivem na região, sabem que é bom providenciar um guarda-chuva. Não é à toa que, com muito bom humor, o pessoal que mora ou morou na cidade costuma brincar: “para chegar em Joinville é fácil. Descendo a serra, na BR 101, é a primeira chuva à esquerda!”. Acontece que existem algumas formas de identificar a cidade que acabaram adquirindo certa “fama”. “Cidade das Flores”, “Cidade do Príncipe”, “Manchester Catarinense”. Entre esses rótulos, a de “cidade que só chove” se circunscreve. O clima parecia cada vez mais sufocante, com “bafos” de ar quente sendo lançados sobre as pessoas com frequência. É fácil se sentir em uma sauna, porém, sem o conforto de poder ficar parado, e ainda existe a atenuação do sol escaldante. Esses momentos de sufoco térmico costumam atingir seu auge entre as onze e as quinze horas. A sensação de desmaio e náuseas tomam conta do sistema digestivo e da cabeça, e uma leseira quase que irresistível toma conta de todos os músculos do corpo, fazendo-o tender à estagnação enquanto o sistema respiratório busca incessantemente respirar um ar menos quente. Geralmente a chuva ajudava com essa sensação, em meados ou no final da tarde.

Mesmo com todos esses sinais, Kauê, Antônia e Pedro não levaram guarda-chuva consigo, quando saíram para o centro de Joinville, para passear e bater um papo. Não deu outra: por volta das 16h começou a chover torrencialmente. E foi assim que começaram a conversar sobre as maneiras como as pessoas identificam Joinville.

– Que azar! – Exclama Pedro. – Chovendo assim… justamente hoje, que marcamos de nos encontrar! E ainda por cima, não resfria nada!

Era assim que os três amigos estavam passando suas férias. Desde a época da virada de ano para 2016, o clima vinha aprontando dessas surpresas. Ainda chovia forte no final da tarde, mas não por muito tempo. Após a pancada de chuva, geralmente o sol voltava a esquentar os dias joinvilenses.

 – Joinville é a cidade da chuva… mas também é a cidade dos príncipes! – Falou Kauê, debochadamente.

– É verdade, e também é uma cidade de imigração alemã! – Comentou Antônia. – Aliás, lembram-se que combinamos de passar no Museu de Imigração? Vamos nos abrigar em uma das copas da rua do Príncipe… – sugeriu. – Esperamos um tempo até a chuva passar, para podermos continuar andando até o museu…

Os três correram, então, para baixo das copas das lojas atrás da catedral. Não sem antes se molharem um bocado, e Pedro quase levar um tombo. O grupo de amigos estava indo até o Museu Nacional de Imigração e Colonização de Joinville, localizado no centro da cidade. Nunca haviam visitado esse espaço antes, a não ser quando estavam na escola, apesar de morarem na cidade há um bom tempo. Kauê, Antônia e Pedro se conheciam de longa data. Quando crianças, moravam no mesmo bairro, e devido a isso, acabaram frequentando a mesma escola, onde se conheceram desde o ensino infantil. Inclusive, visitaram juntos o museu no dia em que a escola os levou, mas o momento que mais lembravam era o do lanche, no jardim do museu, além de várias antiguidades espalhadas pelo espaço, que não lembravam ao certo o que era. Os três ficaram muito amigos, mas nada como o tempo para distanciar as pessoas. Acabaram largando a escola, e os motivos da desistência escolar acabaram sendo basicamente os mesmos do afastamento dos amigos. Kauê constituiu família, e precisou se dedicar ao trabalho e à sua filha. Antônia também largou a escola por questões familiares, mas estava relacionado aos seus pais e irmãos mais novos: a partir de sua entrada na adolescência, precisou começar a trabalhar para ajudar em casa, e considerou muito cansativo conciliar a jornada de trabalho com o tempo escolar. Pedro trabalhava com seu pai, e após concluir o ensino fundamental, não viu muito sentido em continuar estudando.

Agora, os três estavam dispostos a “recuperar o tempo perdido”, como já haviam falado muitas vezes naquela tarde. Há pouco, haviam ido à sede do Centro de Educação de Jovens e Adultos – CEJA para realizar suas matrículas. “No final de fevereiro”, garantiu a funcionária da secretaria, “vocês poderão iniciar as aulas”. Haviam combinado de fazer a matrícula juntos, para poderem comemorar, e colocar o papo em dia. “Estamos tomando a decisão certa!”, repetia Kauê, “para ser alguém na vida, é preciso estudar! O conhecimento faz com que sejamos melhores pessoas, trabalhadores mais qualificados!”, afirmava. A vida de Kauê não havia sido fácil, nem antes, nem depois de ter largado a escola, anos atrás. Quando tinha cinco anos, ele saiu com seus pais de Piraquara, no Paraná, e vieram morar em Joinville, em busca de empregos. Mas a situação, como eles puderam perceber quando chegaram à cidade, não era o que pintavam os jornais, telejornais, anúncios e panfletos de empresas, imobiliárias e da prefeitura de Joinville. O índice de empregabilidade estava decrescendo, e os salários não eram tão altos. A mãe de Kauê é descendente de indígena, por parte de mãe. Porém, Kauê não sabe qual é a etnia de sua avó, pois a única história que ouvia era a de que seu avô havia casado com uma “bugra” que “caçou a laço”, e sua avó não era lá muito falante. Apesar disso, ela já havia comentado que, para não ser perseguida nem julgada, na sociedade não índia em que passou a viver, precisava negar sua identidade indígena, para poder tentar ter acesso aos mesmos direitos que os outros cidadãos não indígenas. Na época em que engravidou sua esposa, Kauê ainda não havia atingido a maioridade legal. Entretanto, devido à sua situação em casa, achou melhor encontrar emprego e se mudar com sua esposa, para começar vida nova. Apesar das dificuldades, sempre quis voltar a estudar, e sempre associou sua falta de estudo ao fato de não conseguir os melhores cargos. E os melhores cargos, para Kauê, eram os que possibilitariam comprar uma casa própria para sua família.

Era justamente sobre os sonhos de cada um que estavam falando, enquanto Pedro ia até uma barraquinha de lanches, para comprar um suco de açaí. Avistaram, então, a algumas marquises da que estavam abrigados, três mulheres sentadas em cima de um tapete, juntas com três crianças com não mais de oito anos de idade. Estavam com várias cestarias e artesanatos.

– Gente, acho que eles são índios – Disse Antônia. – Minha irmã tem um trabalho da escola para fazer sobre os índios, seria interessante se ela levasse artesanatos… vamos ver como fazemos para conseguir um?

Os dois aceitaram a proposta, e se dirigiram até as mulheres com as crianças. Quando se aproximaram, perceberam que havia vários acabamentos feitos em madeira, em forma de animais. As cestarias eram entrelaçadas com cipós, palha e outros materiais. Os materiais eram coloridos e chamativos. Também era bonitos e bem-acabados. Havia, entretanto, alguns dinossauros e dragões confeccionados, junto com formatos de outros animais, como onças e cobras.

– Com licença… vocês são índios? – Perguntou Antônia, dirigindo-se às mulheres.

– Sim, nós somos guarani. – Respondeu uma das mulheres pontualmente, parecendo um pouco desconfiada. Enquanto falava, uma das crianças, a menor, corria por trás da indígena, sorrindo, e acariciava seus cabelos, de vez em quando. A guarani parecia não se incomodar.

– Nós gostaríamos de saber como fazemos para poder ter um desses artesanatos. – Disse Antônia. – Eles são muito bonitos… e minha irmã tem um trabalho escolar para fazer sobre índios, que ela precisa pesquisar nas férias.

– Eles estão à venda. Cada um tem um preço diferente… – Explicou a guarani.

– Mas estou vendo que vocês fazem dinossauros e dragões de madeira também… – continuou Antônia. – E ainda por cima vendem… isso é próprio da cultura de vocês? Ou é um trabalho a parte da cultura de vocês?

As mulheres guarani olharam brevemente para a garrafa de Pedro que continha a embalagem com o desenho do açaí. Em seguida, voltaram a fazer suas atividades de organizar o artesanato, enquanto conversavam em outra língua, provavelmente em guarani. Novamente em um tom calmo e pausado, a guarani que respondeu anteriormente às perguntas de Antônia disse:

– Vendemos por que nossos povos vêm tendo muitos problemas para plantar. Nosso artesanato e nossas cestas tem significados que nos ligam aos nossos ancestrais. Mas também fazemos estes, bem coloridos, para a freguesia. – Disse. – Nossas terras estão sendo invadidas a muito tempo, e as áreas em que estamos localizados não são tão férteis para o que plantamos. Para o tamanho de Santa Catarina, os povos indígenas ocupam uma área muito pequena… e os povos indígenas tem crescido cada vez mais. Vender os artesanatos é uma maneira de manter nosso modo de ser, de viver. Tudo o que fazemos tem uma relação com Nhanderu (Deus nosso Pai Maior) e com a natureza, e também tem a ver com o espírito cosmológico. Os grafismos e desenhos estão relacionados com a simbologia, a mitologia e o sistema guarani. Existem, por exemplo, grafismos em cestarias que significam o caminho que os guarani percorrem quando mudam-se de uma aldeia para outra ou visitam os parentes em outras aldeias.

– Hum… eu vou querer a onça e a cobra – Disse Antônia, meio confusa com o que a guarani dissera, apontando para os artesanatos de madeira. – Como é o seu nome e de onde você é?

– Meu nome é Kerexu. – Respondeu a mulher, sentando a criança em seu colo. – Mas não “sou” de um lugar. Nós, guarani, andamos por várias aldeias e moramos em vários lugares. Atualmente, eu minha família estamos na aldeia Tarumã, na região que vocês chamam de Araquari. Meu filho mais novo (e mexeu nos cabelos da criança) nasceu recentemente, e quero que o mesmo Caraí que me deu meu nome, dê o nome ao meu filho. – Disse Kerexu e explicou em seguida, vendo o olhar de confusos dos três: – Os guarani recebem seus nomes meses depois de nascer, por meio dos sábios mais velhos das aldeias, nosso líderes espirituais, os Caraí. Estes líderes espirituais conseguem identificar o nome à alma de cada um, de modo a dividi-los entre os deuses. A inserção dos guarani na comunidade, a partir de então, ganha sentido, pois todos irão chamar a criança guarani pelo seu significado.  Cada nome tem um significado, meu nome quer dizer “lua crescente”. Para cada pessoa, há um nome, e para cada nome, um significado.

– Bem, e por que vocês têm tido problemas com as suas terras? – Perguntou Kauê. – Por que vocês não conseguem mais plantar?

– A agricultura tradicional guarani está ligada ao mundo espiritual, e isso se evidencia na prática. – Explicou Kerexu. – Buscamos plantar, milho, abóbora, Batata doce, e alguns outros alimentos próprios da nossa cultura. Porém, é preciso de solo diversificado, algo que os guarani estão tendo dificuldades de encontrar. Para que vocês entendam isso, entretanto, preciso lhes contar sobre os Sonacirema…

– Quem? – Perguntou Pedro, curioso.

– Os povos Sonacirema. – Disse Kerexu.

Já fazia um bom tempo que um misterioso grupo havia se instalado na região. Suas estranhas crenças, formas de agir, costumes, valores e hábitos vinham há muito afetando a vida dos guarani.

– Eles se autodenominam Sonacirema, – relatou Kerexu, – devido a designarem o lugar que passaram a viver de Acirema.

– Eles se denominam devido ao nome do lugar que ocupam? – perguntou Kauê.

– Sim, pois os Sonacirema possuem uma estranha crença de que sua essência, que os define e identifica, é feita de pedaços do espaço que ocupam. – disse Kerexu. – Por isso, os lugares que decidem se agrupar precisam ser fatiados em pedacinhos, e a cada pedacinho que fatiam, um novo espírito surge, com uma nova essência Sonacirema.

– Mas de onde vieram estes povos? – Kauê perguntou, novamente. – E por que eles acreditariam que pedaços de espaços que ocupam definem o que são? – Essa relação não parecia fazer muito sentido na cabeça de Kauê.

– A tradição dos Sonacirema relata que vieram do Leste, mas os guarani já tiveram e continuam tendo algumas explicações diferentes para o seu surgimento. Os guarani chamam eles de Juruá. – relatou Kerexu.– Vieram para essas terras por que um grande império os cercava, e os impedia de comercializar com outros povos. Eles aprenderam muito com esse império, o suficiente para desenvolver seus meios de transporte e comunicação. Os Sonacirema comemoram até hoje essa época, como se esse fosse o período em que deram um salto, mas tentam excluir da história esses povos que os dominavam econômica e culturalmente, para não demonstrar seu isolamento e dependência nesse período.

– Se vieram de outro lugar… por que estão prejudicando aos guarani? Desta vez foi Pedro quem perguntou.

– Como havia dito, – prosseguiu Kerexu, – para os Sonacirema, a cada pedacinho de espaço é atribuído poderes mágicos, pois eles acreditam que estes pedacinhos conferem estabilidade espiritual.

Kerexu tinha uma expressão calma, como se estivesse repetindo uma história que contara muitas vezes…

– Se os guerreiros Sonacirema defendem que um pedaço é de uma certa pessoa, avisados pelos grandes sacerdotes que escrevem as leis sagradas, acredita-se que este alguém amplia seus poderes mágicos. – percebeu a expressão de curiosidade de seus ouvintes… – Passa a adquirir poderes de transformar coisas e acumulá-las. Buscando esses poderes, o Sonacirema tem cada vez mais fatiado espaços, inclusive o ar, para ampliar o que consideram ser seus poderes mágicos.

– Desculpe, mas isso não parece fazer sentido. Como que eles podem fatiar ao ar? – Manifestou-se Antônia.

– Ao que parece, os Sonacirema acreditam que grandes blocos irão se erguer de um espaço, caso os sacerdotes das leis sagradas realizem o ritual de empossamento de uma fatia do ar que está acima de um determinado local – Kerexu não ligou para a cara de perplexidade que perpassava o rosto dos três. – Para que o ritual de empossamento seja realizado, os Sonacirema vendem seus corpos e sua liberdade através de uma outra série de rituais, que, em muitos casos, envolvem processos graduais de sacrifícios. Aliás, a cultura desse povo está repleta de rituais deste tipo. Curiosamente, o intuito dessas pessoas, nesses processos de autoflagelo, parece ser justamente o de parar de sofrer, pois os Sonacirema são ensinados desde crianças que estão desequilibrados e vazios, e que precisam preencher estas lacunas através do empossamento dos poderes mágicos conferidos pelas fatias de espaço e coisas que obtêm.

“Parece ser uma cultura muito sofredora”, pensou Antônia consigo mesma.

– Os Sonacirema creem que seus espíritos estão separados de seus corpos, e por isso sentem a necessidade de vender o seu corpo para adquirir as substâncias mágicas que acreditam harmonizar o espírito. – Continuou Kerexu. – A crença de que estão desequilibrados e vazios faz com que submetam os corpos a ritos diários de submissão, para terem direito aos rituais de empossamento da serenidade espiritual que buscam. É fundamental que os outros Sonacirema visualizem a participação no ritual, pois precisam demonstrar aos outros que possuem os poderes mágicos necessários para obterem sucesso espiritual.

– Por que eles precisam mostrar que estão bem espiritualmente? – Perguntou Kauê. – Não bastaria apenas… estarem bem?

– A estabilidade espiritual, além de ser um compromisso consigo mesmo, é também uma questão de fibra moral, para os Sonacirema. – Explicou Kerexu. – Ao realizar os ritos de submissão do seu corpo, os Sonacirema demonstram estar atingindo sucesso em suas conquistas mágicas. Os rituais servem para conter a instabilidade, vista como antiética pelos Sonacirema. Quando aparentam instabilidade espiritual, são entendidos como maus, loucos e fracos, pois acreditam que, nessa situação, a pessoa passa a representar um perigo para as demais, como se sua instabilidade exaurisse os poderes mágicos da comunidade. As práticas de punição dos que se encontram nessa situação incluem o isolamento, e perseguição constante por parte dos guerreiros Sonacirema, pois acreditam que quanto mais dor as pessoas sentem, mais poderes obtêm, não sendo à toa que seus grandes deuses e heróis tem histórias cruéis e martirizadas. Além das punições físicas, estas pessoas instáveis espiritualmente costumam passar por dolorosos tormentos espirituais, sentindo-se infelizes e sem liberdade.

– Então todos os Sonacirema que não atingem essa tal estabilidade sofrem essas punições e dores? – Indagou Antônia. – Não faz sentido sofrerem por coisas que eles mesmo criaram…

Kerexu continuou:

– Na verdade, a maioria dos Juruá ou Sonacirema, não conseguem atingir o que entendem por estabilidade. Os poderes mágicos necessários para isto requerem dádivas substanciais que a maioria dos Sonacirema não tem condições de ter. Por isso, para buscar fugir da dor destes tormentos que acreditam ter a ver com a estabilidade espiritual vinculada à posse dos espaços, os Sonacirema aparentam ter os poderes mágicos, imitando os padrões rituais dos que tem tais poderes, por mais que estes também não o tenham, pois também fingem por medo de sofrer as punições e tormentos que as pessoas instáveis tem que enfrentar. Os antropólogos que tem estudado essa sociedade vêm revelando o quão importante lhes é a aparência. Para eles, é fundamental, desde criança, conseguir fingir ter o que lhes falta e ser o que não são, pelo menos em relação ao que imaginam/desejam ter ou ser. O mais interessante é que toda a comunidade parece compactuar com os fingimentos do(a) ator(a) Sonacirema, pois os incentivam a fingir. Demonstrar os próprios defeitos, por exemplo, pode levar a extensos rituais de expurgação dos demônios internos, por um especialista feiticeiro existente nessa cultura, o Doutor Bruxo. Para poder aparentar que possuem as dádivas mágicas necessárias para estabilizar seus espíritos, há algum tempo os Sonacirema criaram um conjunto de templos chamados Socnab.

– E para que servem estes templos? – Quis saber Kauê.

– Acredita-se que os Socnab são capazes de captar os poderes mágicos que são necessários para fatiar os espaços e conferi-los a objetos constituídos de fibras vegetais e de poupas de madeiras, transformadas em pasta através de uma sopa mágica, que é secada em seguida. – Informou Kerexu.

– Hum? – Exclamaram o três ao mesmo tempo.

– As pastas mágicas ganham poderes quando são jogadas em várias chapas de compostos que marcam e pintam as pastas de várias formas, o que confere às fibras uma margem de segurança e condições de durabilidade dos efeitos poderosos da pasta. – Continuou Kerexu. – Aqueles que tentam sobreviver sem acreditar no poder da pasta mágica destinam a si mesmos e as suas famílias os piores castigos físicos, morais e espirituais, podendo ser encarcerados ou condenados à fome e a miséria. – Lamentou Kerexu.

Pedro, Kauê e Antônia acharam tudo aquilo realmente estranho…

– Os Sonacirema costumam fazer juramentos mágicos aos Socnab, em que vendem seus corpos para poderem acessar ao poder da pasta. Através do acesso à pasta mágica, fornecida pelos Socnab, os Sonacirema conseguem ostentar poder e estabilidade espiritual, por mais que a pasta mágica continue sendo dos templos Socnab. Somente ao fim de várias décadas, o Sonacirema poderá se desfazer do juramento proferido, e voltar a ser dono das atividades do seu próprio corpo – Kerexu pausou sua fala, e os amigos tiveram tempo de se entreolharem. Seus olhares revelavam como estavam abismados. – Os Sonacirema podem, durante o processo do juramento, aparentar que possuem a estabilidade cobiçada em sua cultura, por mais que nem ao menos o seu corpo lhe pertença. O que é curioso é que a quantidade de pasta vegetal e seus derivados mágicos que são necessários para o fatiamento dos espaços tem sido cada vez maior, pois os lugares para fatiar tem ficado cada vez mais escassos. – Dizia Kerexu, enquanto se entretinha olhando para o céu.

Pedro ia fazer uma pergunta, mas desistiu ao perceber que Kerexu iria continuar a falar.

– Isso ocorre principalmente por acreditarem que alguns merecem, pela posição que ocupam nos ritos sociais, maiores poderes, ocupando quantidades imensas de espaços, para poderem ostentar e adquirir mais estabilidade espiritual, além de construir os vários santuários que servem para desviar a atenção da repugnância do corpo humano. Os Sonacirema acreditam que o corpo humano tende para a debilidade e a doença, tendo como única esperança desviar estas características através do uso das poderosas influências do ritual e do cerimonial. – Disse Kerexu.

– Isso significa que essa cultura está acabando, que estão desaparecendo? – Quis saber Antônia. Parecia-lhe óbvio que, caso não tivessem para onde se expandir, e se acreditassem que estavam doentes, desapareceriam.

Kerexu prosseguiu falando, respondendo à pergunta de Antônia:

– Se esta mágica é feita apenas pelos feiticeiros construtores e Socsab… perdão, Socnab, por que eles compartilham esta magia com os outros Sonacirema? – Perguntou Pedro.

– Os Sonacirema pagam dádivas substanciais através das pastas vegetais mágicas. – Explicou Kerexu. – Este é o motivo da segunda consequência da escassez de espaços para fatiar. A maioria dos Sonacirema acreditam não possuir a quantidade necessária de poderes mágicos advindos das pastas mágicas, para poderem fatiar os espaços que encontram. Para fugir dos terríveis tormentos do desequilíbrio espiritual, que consiste na demonstração de fraquezas, por não possuir tais poderes, os Sonacirema buscam acumular poderes mágicos através de um ritual realizado pelos Socnab, criando uma profecia escrita. É importante, durante o ritual, que o desprovido de poderes mágicos desenhe imagens que o represente em cima da profecia. O desenho das imagens é importante para o ritual, pois indica que o solicitante de poderes mágicos está ciente dos sacrifícios corpóreos e espirituais que terá de passar para ganhar os poderes dos Socnab. Esses sacrifícios, em geral, envolvem a falta de sono e submissão a atividades forçadas em rituais diários, para a devolução gradual das pastas mágicas ao Socnab, durante, no mínimo, três décadas…

– Como que eles podem se destruir assim, só para poder aparentar que são mágicos? Essas tribos não têm noção de que as crenças deles não são verdadeiras? Eles parecem ser muito atrasados! – Perguntou Kauê.

– E por que os Sonacirema dependem dos Socnab para fatiar os espaços? – Perguntou Antônia. – Afinal, com ou sem Socnab, as opções são limitadas, devido à falta de espaço para fatiar…. Por que ser devoto destes templos e se prender aos seus rituais de sacrifícios também?

– Seria possível a muitos desses Sonacirema viver sem a quantidade de pastas mágicas, ou acumular as pastas que os possibilitam ter o certificado mágico para recortar a terra de forma mais devagar, sem precisar ficar por tanto tempo presos aos sacrifícios dedicados em nome dos Socnab, e ainda assim podendo liberar do fatiamento do espaço os encantos espirituais necessários para obter estabilidade espiritual. – Disse Kerexu. – Entretanto, acreditam que os mesmos poderes que são utilizados para fatiar o espaço são empregados na manutenção dos objetos que utilizam para aparentar a fortaleza de suas áureas espirituais. Os Sonacirema sentem a necessidade de manter essa aparência em suas vidas sociais através destes objetos, tais como utensílios mágicos com os quais se comunicam ou se deslocam. Muitos destes objetos têm a ver com os seus ritos corporais, pois os Sonacirema possuem estranhas práticas sadomasoquistas com o seu corpo, que acreditam ser o seu corpo repugnante, pois ele estaria em constante putrefação, constantemente doente e débil. Os Sonacirema acreditam que sem esses objetos, suas vidas ruiriam, seus amigos os rejeitariam, e suas famílias seriam perseguidas por espíritos que as deixariam infelizes.

– Aonde estão esses povos agora? E o que eles pretendem exatamente, através de todos estes rituais mágicos? – Perguntou Pedro, curioso.

– Como se pode perceber, a cultura Sonacirema possui inúmeros rituais, permeados pela crença na magia. – Falou Kerexu. – Suas lendas e mitos dão sentido aos seus modos de vida e suas relações sociais.

– Parece ser impossível que uma cultura tão cheia de crenças autodestrutivas continue a existir… – Comentou Antônia.

– No entanto, os Sonacirema aprendem desde crianças sobre as suas regras sociais, seus costumes e suas crenças, através da convivência e do contato com as formas de comunicação de sua sociedade, e até em suas escolas. – Falou Kerexu. – A relação que os Sonacirema mantêm com a magia de seu povo está diretamente ligada às suas escolas, onde aprendem a acreditar que seus sacerdotes e feiticeiros possuem o poder para resolver seus males. É nas escolas que aprendem que alguns podem ser mais poderosos que outros, e por isso, devem ser mais ou menos valorizados, e ocupar diferentes espaços na sociedade, dependendo do poder que podem captar, de acordo com a sua aparência física e social, dos seus núcleos ancestrais, e grupos rituais cerimoniais. Por isso, para a inserção dos neófitos nos espaços que a sua aparência possibilita se inserir, existem diferentes tipos de escolas. As escolas que formam a maioria dos Sonacirema ensinam que apenas os Sonacirema têm a verdade das coisas, pois somente eles sabem fatiar o espaço. Existem as escolas templo, para onde vão apenas os Sonacirema que possuem aparência física, espiritual e social necessária para se tornarem sacerdotes e feiticeiros, nas diversas artes Sonacirema. A iniciação nestas artes consiste em moldar as crenças dos estudantes ao que os artistas feiticeiros de cada arte acreditam. Assim, podem dominar os feitiços inerentes às artes mágicas que decidem seguir. Para o restante, que não pode se iniciar nas escolas templo, acabam seguindo as escolas de encantamentos especializados, para dominar feitiços muito específicos, e utiliza-los para servir aos feiticeiros moldados nas escolas templo.

 – E de onde essas escolas tiram essas coisas? De onde elas tiram que os Sonacirema precisam fazer estes rituais que prejudicam a muitos deles? – Perguntou Antônia, tentando achar algum sentido em tudo aquilo.

– Para poder narrar seus mitos e identificar a cultura Sonacirema, existem influentes e poderosos repentistas-sacerdotes, os Serodairotsih. Esses sacerdotes compõem narrativas mágicas que são registrados em livros mágicos, para convencer aos iniciantes sobre a validade e a importância de sua cultura e suas crenças, contando histórias sobre o passado. – Explicou Kerexu.

Os amigos acharam muito esquisito ter alguém responsável por convencer outras pessoas através de palavras mágicas, de quem eles são. Kerexu prosseguiu:

– Os sacerdotes Serodairotsih, ao contar as verdades sobre o passado, presente e futuro, levam em consideração apenas a história dos Sonacirema, fazendo com que os Sonacirema já iniciados nessas palavras enxerguem outros povos apenas na visão dos Sonacirema, de que todos precisam compactuar de suas práticas e crenças. – Disse Kerexu.

– Mas como que vocês conheceram os Sonacirema? – Indagou Kauê. – E quais problemas os guarani vem tendo com eles?

– Os Sonacirema são agressivos com outras culturas, pois acreditam que o único modo de vida correto e as únicas crenças verdadeiras, são as suas. – Prosseguiu Kerexu. – Os guarani vem tentando mostrar seu modo de vida e sua forma de entender a história aos Sonacirema. No entanto, eles vêm tentando fatiar nossos territórios sagrados, sem entender porque não fatiamos também o espaço, e nos menosprezam por não compartilhar de seus valores e crenças. Inicialmente, os guarani pensaram que se tratavam de povos irracionais e atrasados, incapazes de compreender a relação com a natureza. Mas durante o longo tempo de convívio com eles, fomos aprendendo sobre essa cultura, e entendemos que precisam ser educados, e se conscientizar de que sua cultura não é a única que existe. Talvez, para isso, precisem aprender importantes lições que nossos sábios têm tentado lhes ensinar. Tentamos ser pedagógicos com eles, mas muitas vezes, os Sonacirema não querem aprender. Mas muitos entre os guarani tentam explicar que não temos as mesmas crenças, nem os mesmos modos de vida, como o guarani Roque Timotéo:

Para mim eu nasci aqui no Brasil, eu nasci aqui no Paraguai. Mas para você eu nasci aqui no país Argentina. Para mim não, para mim não tem só um Paraguai, tudo isso aqui é mundo Paraguai. Tudo é Paraguai, porque nós índios Guarani não temos bandeira, não temos cor. E para mim Deus deixou tudo livre, não tem outro país. Tem Paraná, tem quantas partes o Rio Grande. Do outro lado já é outro país, mas para mim não tem outro país, é só um país. Quando uma criança nasce aqui no Brasil, nasce lá no Paraguai. Quando nasce no Paraguai, ela nasce aqui mesmo também. Só um país. Para você eu nasci aqui na Argentina, mas para mim eu nasci aqui. É igual. Porque a água, por exemplo, esse rio é grande [mostrando o rio Três Barras], mas só em cima está correndo, por baixo é o mesmo, a terra. Yvy rupa é tudo isso aqui, o mundo.

– Essa tentativa pedagógica dos guarani tem dado certo? Como que este povo pode se apegar a crendices para justificar tanta violência com os outros e com eles mesmos? – Perguntou Antônia, olhando para Kerexu e seus amigos, aturdida.

– Para alguns Sonacirema, os quais buscam nos ouvir com mais seriedade, tem dado mais certo. – Explicou Kerexu, em tom lamentoso. – Realmente, parece ser difícil aceitar que existem povos com tais crenças. Porém, alguns estudos realizados por pesquisadores da área da antropologia revelam o quão difícil é compreender como este povo conseguiu sobreviver por tanto tempo sob a carga que impôs sobre si mesmo. Mas até os costumes tão exóticos dos Sonacirema são possíveis de serem entendidos, quando paramos para pensar na situação de nossa própria cultura. Se olhássemos nossa cultura de longe de nossas certezas de que somos mais desenvolvidos ou civilizados, como se subíssemos uma colina mais alta para enxergar as várias sociedades que vivem na planície, seria fácil perceber que nossa cultura é formada por várias crenças mágicas, que caso vistas em um único e rápido relance, pareceriam cruas e irrelevantes. Mas sem o poder de orientação dos rituais e cerimoniais, as pessoas que vivem em sociedade não poderiam ter lidado com suas dificuldades práticas, nem ter organizado suas formas de vida social.

A chuva estava diminuindo. Os amigos estavam se sentindo estranhos, por aquela inusitada conversa. Queriam poder ajudar, mas não sabiam ao certo se poderiam fazer alguma coisa pelo povo de Kerexu.

– Acho que vamos indo para o Museu de Imigração… eles fecham às 16h, temos apenas uma hora! – Falou, finalmente, Kauê. Além de querer chegar ao museu antes do fechamento, ele estava incomodado com a história que acabara de ouvir. Ele achava que um povo com tantas crendices, como os Sonacirema, era muito atrasado, e precisava ser civilizado.

As crianças guarani estavam conversando, sentadas juntas, brincando com pedaços de galho de árvore, de alguma brincadeira que os três amigos não conheciam. Já as mulheres guarani que estavam acompanhando Kerexu, estavam conversando por um bom tempo em guarani. Falaram alguma coisa com Kerexu, que em seguida, falou:

– Não entendo como que pode existir um lugar específico para identificar e lembrar de uma época através de objetos… estamos vivendo graças a Nhanderu! A história acontece por que ele nos deu a natureza para vivermos, por isso os guarani precisam proteger o milho, e outros alimentos! Não precisamos de objetos para lembrar, pois tudo em nossa cultura faz com que os guarani se lembrem de quem são! Além do mais, teria que ser guardado os objetos de todos os povos… por que guardar apenas as lembranças de alguns?  – Comentou. – Enfim, bom passeio a vocês! Avy’aite nendive!

Sem entender muito bem o último comentário de Kerexu, o grupo de amigos correu para o museu, onde encontraram um casarão antigo, com uma estrutura de fazer inveja às casas atuais de pessoas com grande poder aquisitivo. Dentro da casa, no piso térreo, existiam várias salas de visitação, com diversos artefatos. Todos estes objetos eram próprios para o uso doméstico, e variavam de utensílios destinados ao processamento e manuseio da alimentação como xícaras, talheres e pratarias, até instrumentos musicais como piano. Os amigos também avistaram mesas, cadeiras, retratos, e árvores genealógicas penduradas nas paredes. Antônia, lembrando-se de Kerexu, e da conversa que tiveram a pouco, em que a guarani disse morar em aldeias na proximidade da região de Joinville, perguntou-se se o fato de os filhos de descendentes europeus casassem ou tivessem relações com descendentes indígenas, eles estariam presentes na árvore genealógica. “Os descendentes indígenas apareciam nas árvores genealógicas?”, “Como os descendentes indígenas de Joinville faziam para mostrar a sua nobreza?”, “Caso se comprove sua descendência indígena, é possível voltar às aldeias?”, indagava, sequencialmente, Antônia.

Um dos monitores, que se prontificou a explicar a história do casarão, justificou que o manuseio ou contato físico com as peças do museu danificariam os utensílios do

espaço. “Estes objetos foram doados para o museu, precisamos deles para lembrar dos imigrantes”, disse o monitor. A fala do monitor, na cabeça dos amigos, gerou mais uma dúvida: se existiam outros povos na cidade, além dos europeus, por que a história da cidade não se estende a eles?

– O que é isso? – Perguntou Kauê, apontando para um objeto que lembrava uma luneta, que estava dentro de uma salinha cercada de vidro, onde haviam mapas em cima de uma mesma, peso para papel, folhas, pena e máquina de escrever, utensílios estes que faziam companhia ao objeto que suscitava a curiosidade de Kauê.

– É um teodolito. – Respondeu o monitor, parecendo satisfeito por ter ouvido uma pergunta cuja resposta sabia perfeitamente. – Um instrumento de medição de ângulos. Foi muito utilizado para dividir as terras que seriam vendidas aos imigrantes que vieram morar em Joinville.

O monitor, então, explicou que a cidade havia sido criada oficialmente devido a uma tentativa do império brasileiro, no século XIX, de urbanização das terras do sul do Brasil. O governo imperial decidiu criar políticas de branqueamento, atraindo povos europeus para virem morar e trabalhar no sudeste do Brasil, formando-se colônias de imigrantes euro-descendentes nessas regiões. No caso da região de Joinville, as terras estavam sob a posse do príncipe de Joinville, marido da irmã de Dom Pedro II, a princesa Dona Francisca, que ganhou como dote de casamento 25 léguas quadradas de terras, nas regiões onde hoje ficam Joinville e suas cidades vizinhas, criando assim uma porção de terra chamada de Domínio Dona Francisca.

– O príncipe de Joinville não ficou com a posse das terras dessa região por tanto tempo. – Prosseguiu o monitor. – Ele negociou a venda das terras com um senador e empresário da Saxônia, Mathias Schroeder. Surgiu, assim, a Sociedade Colonizadora de Hamburgo de 1849, que seria responsável por vender os lotes de terra, atrair imigrantes europeus para comprá-los, e administrar a construção da colônia. Também estava previsto que o príncipe de Joinville criaria o Domínio Dona Francisca, empresa destinada a demarcar as terras do príncipe, loteá-las e gerir o processo de venda. As terras foram sendo demarcadas em lotes e vendidas…

– Mas não havia ninguém morando nessas regiões? – Perguntou Antônia.

– Existiam algumas fazendas na região… resultado da inserção de sesmarias que plantavam principalmente cana de açúcar… – Respondeu o monitor. – Eram portugueses, negros escravos e caiçaras que viviam e plantavam aqui. E existiam também os povos nativos, indígenas, que circulavam na região…

– Existiam não, existem. – Corrigiu Antônia. – Conversávamos agora a pouco com uma indígena guarani que nos contou que mora em aldeias aqui pela região.

Para Kauê, que queria comprar uma casa ou apartamento para si e para sua família, estava sendo interessante saber como iniciou o loteamento das terras da região, e como começaram a ser distribuídas. Aproveitou o momento em que o monitor se afastou um pouco para comentar com os dois amigos:

– Essa coisa toda de lotes de terra me lembra que eu estou procurando um imóvel para financiar. Quero buscar estabilidade financeira, e, o que melhor do que morar no que é seu?

– Legal cara! – Disse Pedro. – E você e sua esposa estão economizando dinheiro? Já tem algo em vista?

– Bem, não queremos algo muito longe do trabalho – respondeu Kauê. – Quero voltar a estudar para ver se consigo progredir na vida, para que nós, eu e minha família, possamos ter mais felicidade… mais conforto, sabe? Assim, daremos uma vida melhor para a minha filha… andei dando uma olhada, mas tem muita área de invasão no bairro onde moro. Temos que tomar cuidado para não comprar um lote irregular… talvez seja mais seguro comprar um apartamento na planta, de alguma imobiliária. – Disse Kauê.

Os três saíram do casarão e andaram até uma casa enxaimel, técnica de construção de casas utilizadas em várias regiões da Europa, e que foram adaptadas por esses imigrantes no Brasil. Dentro da casa, haviam vários objetos, como tecidos bordados nos quartos, salas e na cozinha da casa. Nos bordados, haviam escritos em alemão, e, ao lado, traduções feitas em painéis, provavelmente feitos pelos funcionários do museu, em algum momento. Kauê chegou perto de um dos bordados, na parte da cozinha. “Vejam este”, disse, apontando para a tradução. Estava escrito: “O homem precisa de um lugarzinho, mesmo que seja pequeno, para que possa dizer: – Veja, isso aqui é o lugar onde vivo, onde amo, onde descanso… Aqui é minha pátria, aqui estou em casa”.

– É disso que eu estou falando! – Falou Kauê, revigorado. – Um espaço só seu! Um lugar em que as pessoas possam ser felizes! Uma coisa em que se possa…. Mas o que é que você tem Antônia!!?

Antônia estava lívida e agitada. Parecia ter tomado consciência de algo que a deixou atemorizada e empertigada.

– Bem, acho que… – Começou Antônia…

– Pessoal, já está na hora de fecharmos. – Interrompeu uma monitora.

Os amigos foram até o portão do museu, para que ele pudesse ser fechado. Antônia disse que gostaria de passar pelo ponto em que vieram antes. Ao passarem pelos toldos onde antes se abrigavam da chuva, encontraram Kerechu e as outras mulheres indígenas, com seus filhos, que brincavam, enquanto guardavam os artesanatos, provavelmente se preparando para ir embora. Ao passarem por eles, Antônia parou. Virou para Kerexu, e perguntou:

– Kerexu… os Sonacirema somos nós, não é?

Kerexu sorriu, e continuou a guardar os artesanatos.

Olhando para si

Realize um desenho sobre as formas de viver e de residir/morar/habitar da sociedade em que você vive.

Agora, imagine que você é um estudioso, nascido em uma outra cultura, que está investigando a cultura americana (sonacirema), e encontrou o desenho que você fez. Pense em como você poderia estranhar o seu desenho e associa-lo aos povos americanos/sonacirema. Como atividade, elabore, em grupos, um audiovisual, com uma canção ou narrativa oral (fala) sua, que conte uma história sobre como o seu desenho tem a ver com a cultura do povo Sonacirema (Americanos) da época que você vive.

Orientações:

– Vocês podem utilizar ferramentas como o seu celular, câmera fotográfica e o computador de sua escola, através dos programas de gravação contidos no aparelho, podendo realizar gravações em vídeo, e editá-los em programas como o Windows Movie Maker, Editor de Vídeos do Youtube, ou o aplicativo de celular VivaVideo. Também podem juntar imagens fotografadas (produzidas por você ou pesquisadas) com sons, utilizando programas como o Microsoft Power Point, Microsoft Paint, ou programas similares.

– Também é possível fazer uma peça teatral, com a atividade sendo o roteiro da peça.

– Entre as imagens utilizadas no audiovisual, é obrigatório utilizar as imagens dos seus desenhos (fotografado).

– Você pode procurar imagens na internet, ou ainda produzir novas imagens, desenhando ou fotografando. Pode ser gravado pessoas, objetos e cenários que lhe ajudem a contar sua história.

– Cada membro do grupo pode auxiliar em diferentes partes do processo de produção do audiovisual, de acordo com seus talentos, aptidões, conhecimento prévio, ou vontade de aprender (captura das fotografias, produção dos áudios, edição de sons e/ou imagens, montagem da apresentação, elaboração dos roteiros, etc).

– Utilizem a criatividade!