Os Nhanderu Mirim são os ancestrais Guarani que conseguiram chegar em Yvy Mara’e (Terra Sagrada), onde vivem os Nhanderu. Estes ancestrais conseguiram meditar durante sua vida inteira, e se livrar das imperfeições que prendem os mortais a este mundo, através das rezas na Opy (Casa de Reza), e do respeito ao Mbya Reko (Modo de Ser Guarani Mbya). Após atravessarem o mar, e encontrar a morada dos deuses, os ancestrais Guarani Mbya se transformam em Nhanderu Mirim, e guiam os karaí e kunhã karaí, a caminhar com as aldeias Guarani, na busca por Yvy Mara e’i

 

NHANDERU MIRIM KUERY OGUATA PORÃ

Os Nhanderu Mirim belamente caminharam

É, meu irmão, minha irmã! Nós temos que lembrar deles. As futuras gerações, as mulheres, as crianças, os homens, tinham que lembrar deles. Nós sabemos disso, mas não fazemos sempre o que ele falou!

Xejaryi Maria Guimarães – Para Rete

(Tekoa Marangatu, Imaruí/SC)

Há muitos anos atrás, existiu um Guarani, a quem hoje conhecemos como Xapa. Ele era tekoaxy como nós, um mero ser humano. Ele se casou e teve dois filhinhos, que eram dois meninos. Um dia, os dois faleceram. Ele chorou muito, tanto que até ia morrer também, mas, então, ele se lembrou de Nhanderu e pediu a força, o ânimo, a saúde. Pediu pra levar ele pro céu, porque morreram os dois filhos dele. Nhanderu ficou sentindo por ele e, então, falou:“tudo bem, mas você tem que fazer aquilo que eu pedir. Aí eu vou te ajudar”. De lá onde estava, ele só escutou; ele não viu, não enxergou. Foi então que Nhanderu falou para ele que, se ele quisesse mesmo ter força para continuar, ele tinha que se separar da mulher. Ele era casado, mas começaram a dormir separados, não namoraram mais. Nunca mais mexeu com a mulher e nem a mulher mexeu com ele.

Quem estava determinando isso era Nhanderu, porque ele já estava prestes a atravessar o mar. Nhanderu falou pra ele: “você já pode se preparar, a sua hora chegou. Os tembiguai (os auxiliares de Nhanderu) já vão chegar pra te levar”. Ele foi e deixou os dois filhos na Terra; não levou nenhum. Quando eles morreram, Nhanderu falou pra ele não ficar triste, pra deixar um pouco tekoaxy (a condição de ser humano, de viver na Terra). Então, ele foi e chegou à beira do mar. Começou a cantar e vieram os tembiguai (ajudantes de Nhanderu), em um barco, para atravessar o mar. Nós, tekoaxy, não sabemos por onde ele atravessou, em qual praia exatamente eles vieram buscá-lo. Não sabemos o local exato onde ele se encontrou com os tembiguai, os nhe’ẽ xondaro (espíritos guardiões) de Nhanderu kuery. Eles se aproximaram e disseram: “você pediu, e agora nós estamos aqui. Pode pôr o pé neste barco”. Xapa falou assim: “eu não posso, porque eu sou tekoaxy. Podem abrir um caminho pra mim, no meio do mar, para eu passar? Assim será melhor pra mim”. Assim que aconteceu.

Ele estava passando o mar e, quando chegou do outro lado, alguém trouxe para ele um pedaço de cipó imbé. Nhanderu ia testar aquele que seria o primeiro Nhanderu Mirim nesta Terra, Xapa, pra ver se ele estava sabendo mesmo; fez mais um teste. Xapa entendeu e pegou o cipó imbé sabendo que não foi entregue à toa pra ele; ele teria que usá-lo para algo. Sabia que devia se preparar para o que vinha pela frente. Então, quando ia botar o pé em Yvy Marã e’y (Terra que nunca vai terminar), vieram em sua direção dois leões marinhos gigantes. Vinha cada um de um lado, querendo atacar ele. Então, ele falou pra Nhanderu: “eh xerui, meu pai, eu sei que isto é uma prova, uma teko a’ã. Eu não tenho medo”. Ele disse que acreditava mesmo em Nhanderu, por isso, não tinha medo. Como ele já sabia, ele pegou aquele cipó imbé e laçou os dois leões marinhos pelo pescoço e foi levando. Ele terminou de fazer a travessia, depois soltou os dois leões marinhos e mandou eles voltarem ao mar, que é a casa deles. Nhanderu Xapa foi o primeiro Nhanderu Mirim.

Depois de um ano, ele voltou de novo nesta Terra, pessoalmente. Ele foi ao cemitério, onde tinha enterrado os dois filhos dele. Fez eles se levantarem de novo e os levou; foi embora e, até agora, não veio mais. Quando os outros viram, ele já estava lá em cima. Então, eles disseram que também queriam ir para o céu. Fizeram uma Opy bem grande para todo mundo se unir. Um dia, Nhanderu disse ao chefe deles: “agora que vocês são bastantes, agora vocês seguem à beira do mar”. E mostrou a estrada para eles. Eles viram e se encaminharam até lá, até aquele lugar que se chama hoje Porto Seguro. Nhanderu os ajudou a fazer uma passarela e, por isso, eles não tiveram tanta dificuldade pra chegar. Alguns passaram, mas outros ficaram e morreram, porque não obedeciam realmente o Karai (aquele que tinha o conhecimento), então, Nhanderu não perdoou. Aqueles que chegaram foi porque eram protegidos por Nhanderu, e nenhum bicho incomodava eles.

Nhanderu Xapai, Nhanderu Mirim Tenonde. Xapa foi o primeiro que foi com Nhanderu, o primeiro Nhanderu Mirim. Os que vieram depois, buscando, eles iam pelo mesmo caminho que Xapa, e foram construindo as Tava (casas de pedra, também conhecidas como Missões Jesuíticas). Aqueles que vinham atrás iam fazendo o mesmo que Nhanderu Xapa. Bastante gente veio depois pelo mesmo caminho que Xapa, e eles iam fazendo as Tava, de acordo com o que o próprio Nhanderu dizia. Eles as fizeram com os jurua (não indígenas, brancos).

Por causa disso é que nós estamos por aqui até hoje. Cada vez mais. Porque nós seguimos aqueles que alcançaram a terra de Nhanderu. Os nossos antepassados queriam ir também, é por isso que eles vieram. Mas não deu. Alguns passaram, mas só um ou outro consegue. A maioria dos que vieram não alcançaram porque não obedeciam o Karai. Alguns acreditavam e outros não acreditavam muito. E, assim, foram indo. Por isso que houve muitos que ficaram, se criaram por aqui, por onde hoje é o Brasil, e na Argentina também. Porque, pra ficar como Argentina, dizem que quem descobriu foram os espanhóis. E este pedaço aqui, foram os Portugueses. Quando um descobria, o outro também queria. Depois de muitos anos, dividiram esta terra. Por isso que tem Brasil, Bolívia, Argentina. Agora, Yvy Mbyte está no lugar, até hoje, onde Nhanderu deixou.

[…] Quando a pessoa não falece na Terra e vai para a morada de Nhanderu, nós o chamamos Nhanderu Mirim. Eles são os segundos donos da Terra. Nhanderu Tenonde é o primeiro dono da Terra. O segundo são aqueles que, há muito tempo atrás, caminharam e passaram para Yvy Marã e’y.

O primeiro Nhanderu Mirim era também uma pessoa, que era tekoaxy, um mero ser humano, que erra. Nhanderu mesmo que nos fez assim, para sermos tekoaxy. Mas, como é que os Nhanderu Mirim, sendo tekoaxy, conseguiam passar? Eles se concentravam na Opy. Eles rezavam e pediam pra Nhanderu, e Nhanderu mostrava o caminho. Ele dizia: “agora vocês podem ir”. O Nhanderu Mirim rã (aquele que será Nhanderu Mirim), ele inicia a caminhada. Ele não vai ficar em um só lugar, vai mudando, vai mudando. Durante todo esse tempo, ele fica na Opy, cantando, perguntando pra Nhanderu como é que tem que ser. Então, Nhanderu vai mostrar outro lugar, pra onde ele tem que ir. E vai mudar de novo, até atravessar o mar. É isso que aconteceu.

Eles sabiam viver da forma certa pra seguir o caminho. Eles não falavam besteira, não brigavam, faziam as suas plantações e não comiam o alimento dos jurua. Sempre seguiam em frente, fazendo aquilo que Nhanderu falava. Era assim que eles, os Nhanderu, os deuses, conseguiam conhecer todo mundo, se poderiam ser ou não Nhanderu Mirim. Plantavam abóbora, milho, jety (batata doce), faziam kaguyjy (bebida de milho), plantavam mandui (amendoim). Nhanderu dizia quais eram os alimentos que eles podiam comer. Não podiam comer qualquer alimento, porque estavam prestes a fazer a caminhada. Já estavam se preparando. Quanto mais eles se aproximavam do local sagrado, tinha mais coisas que não podiam fazer. Eles começavam a obedecer a palavra de Nhanderu, sobre aquilo que pode comer e aquilo que não pode comer. Então, eles aprendiam como fazer para atravessar o mar. São os Nhanderu Mirim, que aparecem como um raio (overa) no céu. Às vezes, de noite, a gente vê um raio sem chover. Esse é o Nhanderu Mirim, aquele que viveu na Terra. Ele que faz esse raio com o “banco de Tupã”, Kuapy Tukumbo.

Eles vieram de Paranaguá; passaram por Paraná. Oguata porã! Eles caminharam belamente, fizeram uma boa caminhada. Os jurua não tinham chegado ainda. Antes deles chegarem, nós já estávamos aqui, neste lugar. Eles, aqueles que seriam Nhanderu Mirim, tinham o pensamento dentro do coração, no peito, e só por isso que eles vieram. Nhanderu que falou aos xeramõi para fazerem essa caminhada, e as outras pessoas seguiam esses xeramõi. Nhanderu que dá esse conhecimento pra fazer a caminhada. Não caminhavam somente porque eles queriam. Nhanderu que mandava fazer essa caminhada. Foram os xeramõi e as xejaryi daquela época que abriram o caminho. Naquela época, era tudo mato fechado. Nem o branco existia naquela época. Mesmo assim, eles vinham caminhando. Nhanderu guiava, mostrava o caminho. Eles perguntavam para Nhanderu: “podemos ir?”. “Já está aberto o caminho. Vai mesmo”, diziam os Nhanderu kuery. Aí, eles andaram. Os mais velhos sempre andavam com Nhanderu, em espírito, sempre rezando. Eles caminhavam não só por caminhar, mas seguindo o propósito, o objetivo que eles tinham. Guata porã, o belo caminhar, é isso. Eles fizeram a travessia; atravessaram o mar seguindo as orientações de Nhanderu. Eles atravessaram o mar; este mesmo mar que nós vemos hoje.

Estou contando, mas não vou contar tudo. Não vou prolongar muito, porque pra eu contar a história desde o início, é difícil pra vocês compreenderem. Os xeramõi e as xejaryi fizeram toda essa caminhada e atravessaram o mar junto com os nhe’ẽ (espíritos). A caminhada que eles faziam era muito difícil. Eles andavam pela floresta, por lugares onde nunca ninguém tinha pisado antes e, mesmo assim, não acontecia nada. Eles vinham, e paravam em alguns lugares, às vezes ficavam anos, às vezes paravam uma ou duas noites só. Mesmo assim, não acontecia nada com eles. No caminho, sempre encontravam algo pra se alimentar; nunca passaram fome, nunca faltou nada pra eles. E, assim, eles atravessaram. Aqueles que caminhavam, chegavam até o lugar que Nhanderu tinha mostrado. Lá eles encontravam os tembiguai kuery (ajudantes de Nhanderu) e de lá eles partiam para a morada de Nhanderu. Quando chegavam perto do mar, os xeramõi ficavam esperando os nhe’ẽ kuery, os tembiguai kuery. Nhanderu mesmo que escolhia aquelas pessoas que obedeceram à regra. E ele levava essas pessoas. Aqueles que fizeram algum mal pra alguém ficavam. O próprio Nhanderu mandou os xondaro para atravessar aqueles que seguiram a regra, a lei. Quem segue certo, chegava à beira do mar. Aí, Nhanderu mandava os xondaro pra atravessar eles no barco.

Isso que foi lembrado desde o começo. Aconteceu isso, eles atravessaram. Fizeram o que tinha que ser feito; por isso que atravessaram. Por isso que os xeramõi falam até hoje, porque é real o que aconteceu tempos atrás. Por isso que eles dizem Guata Porã, belo caminhar, porque eles acreditaram.

Xeramõi Mario Guimarães – Kuaray Mirim

(Tekoa Marangatu, Imaruí/SC)

In:  AFFONSO, Ana Maria Ramo y. LADEIRA, Maria Inês. (Orgs). Guata Porã/Belo Caminhar. São Paulo: Centro de Trabalho Indigenista, 2015. (Projeto pesquisadores Guarani no Processo de Transmissão de Saberes e Preservação do Patrimônio Cultural Guarani – Santa Catarina e Paraná/ Agosto de 2014 – Novembro de 2015), p. 28-31.