Os povos Guarani Mbya, desde muito tempo, caminham para encontrar a morada sagrada em que estão os Nhanderu Mirim, seus ancestrais… Esta caminhada pode não ser feita da mesma forma hoje, mas ainda acontece, movida pelos sentimentos e meditações dos Karaí e Kunhã Karaí, e pela busca de Tekoá (lugar onde se vive o modo de ser Guarani Mbya), em que possam manter o modo de ser Mbya Guarani. Este caminhar é um “belo caminhar”, pois é feito dentro dos princípios da busca pela perfeição, que os Guarani Mbya realizam coletivamente…

 

Nossos avôs antigos, nossos parentes antigos, não viviam como agora. Naquela época, era tudo mato. Desde o começo eles já começaram a caminhar. Mas não era como agora. Nossos avôs antigos rezavam muito e, então, Nhanderu já mostrava o caminho para o filho. Dizia: “agora vai”. Kuaray, no nascer do Sol, sempre iluminava para ele. Várias pessoas, antigamente, vieram, mas não era para ficar por aqui. Vieram para atravessar, atravessar o mar, chegar em Yvy Marã e’y. Sempre vinham. Muitos. Vinham, vinham, vinham. Mas, depois que começaram as cidades e os países – Paraguai, Argentina, Brasil –, aí já não conseguiam mais, pois já não era mais como antigamente. As cidades com suas cercas impediam a caminhada deles.

Xeramõi João Silva – Vera Mirim
(Tekoa Xapukai/Brakui, Angra dos Reis/RJ)
In: AFFONSO, Ana Maria Ramo y. LADEIRA, Maria Inês. (Orgs). Guata Porã/Belo Caminhar. São Paulo: Centro de Trabalho Indigenista, 2015. (Projeto pesquisadores Guarani no Processo de Transmissão de Saberes e Preservação do Patrimônio Cultural Guarani – Santa Catarina e Paraná/ Agosto de 2014 – Novembro de 2015), p. 46.

 

 

Yvy Mbytere, no centro do mundo, os Mbya cantam para Nhanderu. Quem acredita mesmo em Nhanderu ouve a voz dele e, se ele disser: “é esse o caminho que vocês vão seguir”, eles precisam seguir o caminho. Assim, eles continuam a caminhada, assim os nossos avós vieram pra cá. Quem ouve a voz de Nhanderu e segue o que ele diz, isso que é guata porã, o belo caminhar.
Nhanderu guiava eles para eles fazerem a caminhada e mostrava o caminho, e por onde deviam seguir. Assim, eles vieram de Santa Maria e de outros lugares e seguiram juntos. Eles caminhavam a pé. Tinha muita gente a quem Nhanderu ia mostrando o caminho para chegar no litoral. Eles passaram pela Argentina, Santa Maria, Paranaguá. Eles ficavam um mês ou dois meses em algum lugar, e depois seguiam. Assim eles caminhavam. Eu não sei ao certo como contar porque eu ainda não tinha nascido naquele tempo. Só os meus pais e meus avós.
Eles ficaram em São Paulo, formaram uma aldeia, ficaram um mês, dois meses. Assim eles caminhavam, faziam aldeias pelo caminho, porque Nhanderu não os queria no mesmo lugar. Nas aldeias antigas eles não podiam ficar porque eles não poderiam criar as crianças nesse lugar e, assim, eles continuavam a caminhada e seguiam o que Nhanderu dizia.
No começo do mundo, a gente já existia aqui. Nhanderu criou o nosso povo e outros povos, por isso estamos aqui. Nhanderu nos criou antes dos jurua (não indígenas), por isso, nós temos os nossos direitos, mas eles também têm os direitos deles. Eles precisam nos valorizar. Eles pensam que sabem mais do que nós. Nhanderu deixou a terra para nós vivermos aqui, mas os jurua kuery pensam que são mais inteligentes do que a gente e, por isso, eles mataram muitos índios, mataram muitos índios por causa da terra. Nhanderu diz: “os nossos filhos estão sofrendo nas mãos dos jurua kuery. Eles estão acabando com os nossos filhos. Vamos destruir a terra aos poucos, assim é melhor”. E se Nhanderu destruir a terra, o que os jurua kuery vão fazer? Não foram eles que fizeram a Terra, mas dizem que são os donos da terra, fazem os índios sofrerem, alguns não gostam do índio, matam os caciques para conseguirem tirar o povo da sua própria terra.

Xejaryi Tereza – Djatxuka
(Tekoa Mboapy Pindo, Aracruz/ES)
In: AFFONSO, Ana Maria Ramo y. LADEIRA, Maria Inês. (Orgs). Guata Porã/Belo Caminhar. São Paulo: Centro de Trabalho Indigenista, 2015. (Projeto pesquisadores Guarani no Processo de Transmissão de Saberes e Preservação do Patrimônio Cultural Guarani – Santa Catarina e Paraná/ Agosto de 2014 – Novembro de 2015), p. 47.

 

Os nossos Nhaneramõi kuery que viveram há muito tempo atrás já se foram e não temos mais aqueles que poderiam contar todas as suas histórias. Mesmo assim, tem alguns que ainda sabem. Tento lembrar como e onde começou, mas é muito difícil a gente passar o nosso conhecimento aos outros. É tudo verdade, há muito tempo atrás os Nhaneramõi kuery vieram. Eles vieram do centro da Terra. Caminhavam sem parar, parando só para comer e dormir. Sempre vinham seguindo ao lado da beira do mar. Nessas caminhadas, eles passavam dificuldades. Sempre que chegavam em algum lugar onde tinha terra boa, eles faziam plantação. Eles ficavam mais ou menos um ano nesse lugar. É por isso que estas aldeias de hoje já existiam há muito tempo atrás. Quando faziam a caminhada e faziam paradas, eles aprendiam como é a sabedoria dos bichos, das plantas e de todas as coisas. Eles eram Karai kuery, por isso que eles tinham a sabedoria.

Xeramõi Miguel Benites – Karai Tatãxi
(Tekoa Itaxim Mirim, Parati/RJ)
In: AFFONSO, Ana Maria Ramo y. LADEIRA, Maria Inês. (Orgs). Guata Porã/Belo Caminhar. São Paulo: Centro de Trabalho Indigenista, 2015. (Projeto pesquisadores Guarani no Processo de Transmissão de Saberes e Preservação do Patrimônio Cultural Guarani – Santa Catarina e Paraná/ Agosto de 2014 – Novembro de 2015), p. 32.