Seria de se esperar que, após toda a violência imputada aos povos indígenas ao longo dos últimos séculos, isso fizesse as pessoas perceberem que a busca por um modelo padrão de vida nacional oprimi os modos de vida que destoam de seu ritmo e objetivos. Entretanto, as sociedades não indígenas mantem uma série de preconceitos e estereótipos em relação aos povos indígenas. A expectativa dos não indígenas, geralmente é a de que todos indígenas são iguais, e precisam estar dentro de um estereótipo padrão, uma visão inventada pelos próprios não índios, sobre o que significa ser indígena. As pessoas costumam cobrar docilidade dos povos indígenas, como se fossem obrigados a se sujeitar às vontades dos juruá (não indígenas), e esquecer a violência que sofrem diariamente, através da espoliação de suas terras, e dos ataques físicos e simbólicos ao seu modo de ser. Mesmo assim, os não indígenas agem como se nada acontecesse, e as explorações não acontecessem de diversas formas…

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Os juruá (não indígenas) buscaram, durante séculos, fazer com que os povos indígenas negassem suas culturas, e aderissem aos costumes euro-descendente. Após a tentativa de tutelar (responder por elas) e integrar (tentar fazer com que aderissem a um padrão nacional de comportamento social, cultural e econômico) as comunidades indígenas, o imaginário não indígena tem se baseado em ideias bastante equivocadas sobre o significado de cultura, e sobre a concepção de ser “´índio”. Ouçamos o que o professor Edson Kayapó nos fala sobre estes estereótipos:

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Enquanto indígena e intelectual da etnia Kaiapó, o professor Edson Kaiapó percebe e explica a situação dos que são chamados de “índios” pela sociedade nacional. São inúmeras etnias, que tem crescido em termos de população nas últimas três décadas. Provavelmente, por muitas comunidades indígenas estarem perdendo medo de se assumirem enquanto tal. Assumir-se enquanto integrante de um povo indígena pode ser muito perigoso, tendo em vista as violências racistas vinculadas a exploração que não indígenas mantem até hoje. Até a Constituição de 1988, a sociedade e o governo não indígena compreendia que se assumir como indígena implicava em demonstrar inferioridade, por ser uma “fase” que estaria em superação. Logo, para poderem sobreviver, muitas comunidades indígenas tiveram que negar sua identidade…. Com o novo quadro jurídico após a Constituição de 1988, muitos povos indígenas, como os Guarani, têm buscado narrar sua própria história, e demonstrar, através de seus sábios e lideranças, o que significa ser Guarani, quais são suas necessidades, e como compreendem as coisas. Conforme aponta Edson Kaiapó, é preciso compreender o que se chama de “índio”, para compreender que ser indígena é algo muito mais complexo. Envolvem diversas culturas, costumes, crenças, saberes, línguas e formas de ser. No Brasil, estima-se que existam, atualmente, aproximadamente 252 povos falantes de pelo menos 150 línguas diferentes, sendo que estes números podem variar, dependendo da época, das fontes, e do contexto em que as pesquisas são realizadas. E entre toda esta variedade de culturas, a identidade indígena não tem nada a ver com profissão, lugar em que transita, e outros fatores externos às comunidades das etnias indígenas. Afinal, não é porque um inglês ouve samba, que ele deixará de ser inglês… ou um brasileiro trabalhar de torneiro mecânico nos Estados Unidos, não lhe deixará “menos brasileiro”…

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A própria escola, e as aulas de história, contribuíam (e ainda contribuem, em boa parte dos casos) para manter esta visão negativa e preconceituosa sobre os vários povos indígenas. Geralmente, os livros didáticos também falam sobre “o índio”, como se fossem todos iguais. Nestes livros, os povos indígenas só têm sua história contada com a chegada dos povos europeus na América, mesmo que sua estadia neste continente remeta a milênios antes da chegada destes juruá (não indígenas) …. Além disso, as escolas e livros muitas vezes ajudam a reproduzir os estereótipos, reforçando que todo indígena anda nu, come apenas certos alimentos, vive na selva, e não busca se envolver com mais ninguém além de seu povo. Esta visão é equivocada para qualquer cultura, e não apenas para os povos indígenas, pois todas as sociedades humanas estão em interação, e se transformam a partir destas relações… cultura não é uma forma de ser congelada no tempo: pelo contrário, relações culturais estão em transformação o tempo todo, assumindo novos significados e práticas de acordo com o contato com outros grupos, sendo transformado, e também transformando aqueles com quem se relacionam… Assim, a Lei 11.645 de 2008, traz essa discussão para as escolas, para buscar inserir a perspectiva indígena sobre a história:

LEI Nº 11.645, DE 10 MARÇO DE 2008.

Altera a Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996, modificada pela Lei no 10.639, de 9 de janeiro de 2003, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena”.

O PRESIDENTE DA REPÚBLICA Faço saber que o Congresso Nacional decreta e eu sanciono a seguinte Lei:

Art. 1o  O art. 26-A da Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996, passa a vigorar com a seguinte redação:

Art. 26-A.  Nos estabelecimentos de ensino fundamental e de ensino médio, públicos e privados, torna-se obrigatório o estudo da história e cultura afro-brasileira e indígena.

  • 1o O conteúdo programático a que se refere este artigo incluirá diversos aspectos da história e da cultura que caracterizam a formação da população brasileira, a partir desses dois grupos étnicos, tais como o estudo da história da África e dos africanos, a luta dos negros e dos povos indígenas no Brasil, a cultura negra e indígena brasileira e o negro e o índio na formação da sociedade nacional, resgatando as suas contribuições nas áreas social, econômica e política, pertinentes à história do Brasil.
  • 2o Os conteúdos referentes à história e cultura afro-brasileira e dos povos indígenas brasileiros serão ministrados no âmbito de todo o currículo escolar, em especial nas áreas de educação artística e de literatura e história brasileiras.” (NR)

Art. 2o  Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.

Brasília,  10  de  março  de 2008; 187o da Independência e 120o da República.

LUIZ INÁCIO LULA DA SILVA
Fernando Haddad

Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2008/lei/l11645.htm.

 

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Existem vários projetos lançados entre os povos Guarani, para que as sociedades não indígenas que vivem próximas às Tekoá (espaços onde os Guarani vivem seu modo de ser, rompam com seus preconceitos, e interajam com as comunidades guarani de forma mais frutífera. A venda artesanal pode ser um caminho para que os juruá (não indígenas) percebam a beleza e a profundidade da arte Guarani, e do mbya reko (modo de ser Guarani Mbya)…

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Assim, os povos Guarani vendem artesanatos em áreas urbanas, não tendo assistência do governo para conseguir condições territoriais condizentes com as necessidades de sua cultura, e ao mesmo tempo sem apoio para manter sua prática de venda artesanal nos meios urbanos. Além de ser uma questão tradicional, os artesanatos constituem fonte de renda para os povos Guarani. Porém os estereótipos e preconceitos persistem entre os juruá (não indígenas), que esperam que os Guarani vivam da mesma forma que viviam a quinhentos anos… se for assim, por que o mesmo não valeria para os brasileiros? Aliás, quem força os Guarani a venderem seus artesanatos são os próprios não indígenas, que lhes tiraram as condições de viver apenas de suas terras… A prática da venda artesanal é uma nova forma encontrada pelos povos Guarani, de manter o nhandereko, e ao mesmo tempo lidar com as dificuldades impostas pela sociedade não indígena. Os filmes produzidos pelos cineastas Guarani Mbya, buscam explorar estas novas condições, através de uma imersão na cultura Guarani Mbya, flagrando o que pessoas não indígenas não conseguem ver… assista a um trecho do filme documentário  Mokoi Tekoá Petei Jeguatá – Duas aldeias, uma caminhada (2008), produzido pelos cineastas Guarani Mbya Jorge Ramos Morinico, Germano Beñites, e Ariel Ortega, junto com o Coletivo Vídeo nas Aldeias:

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Assim, como lembrou o professor Edson Kayapó, boa parte dos povos indígenas tem buscado uma política de “envolvimento”. Não se colocam contra o “desenvolvimento” no sentido de progresso tecnológico, científico, ou ao bem-estar social. Buscam participar desta sociedade, mantendo a identidade indígena, e tendo seus direitos reconhecidos enquanto cidadãos e indígenas. Isto implica em reconhecer todas as mazelas impostas pelos não indígenas, que atualmente empurra os povos indígenas para condições difíceis de usufruir deste bem-estar, assim como de manter seu modo de vida segundo suas tradições e costumes. As lideranças Guarani, portanto, buscam uma forma de “(des) envolvimento”, sem que isso atrapalhe o “envolvimento entre os diferentes povos e culturas, com condições justas para que todos convivam e desfrutem dos mesmos direitos, respeitando-se as diferenças e alteridades. Será que nós, povos juruá (não indígenas), não podemos buscar este envolvimento, ao mesmo tempo respeitando as diferenças?

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