Para tentar retirar a autonomia dos povos indígenas, o governo brasileiro, apoiado pelos fazendeiros e demais grupos que apoiavam o extermínio das culturas indígenas, elaboraram leis e políticas para oficializar a tutela do Estado sob os povos indígenas. O regime de tutela se tornou a manifestação dos conflitos entre o Estado brasileiro, e os povos indígenas, pois os órgãos indigenistas, como o antigo Serviço de Proteção ao Índio (SPI), e posteriormente a Fundação Nacional do Índio (FUNAI), foram implementadas no sentido de impedir os povos indígenas de se manifestar conforme a sua cultura, tentando-se adequá-los aos ritmos produtivistas do sistema capitalista… Assim, conforme explica o historiador Clóvis Brighenti, no regime de tutela os interesses territoriais indígenas não poderiam ser representados pelos próprios indígenas, e sim pelo que o governo não indígena decidiria…

Para dar conta da prática do confinamento, no início do século XX foi transformado em política indigenista oficial o regime tutelar delineado no século XIX. Diz-nos o antropólogo João Pacheco de Oliveira (2010, p. 34) que o regime tutelar estava voltado especialmente para as regiões de expansão das fronteiras econômicas, em que as populações indígenas mantinham relativa autonomia e não se submetiam às políticas impostas pelo Estado. Em relação ao caráter sociológico do poder tutelar, o antropólogo Antonio Carlos de Souza Lima (1995, p. 43) analisa que se tratava de uma forma de guerra entre o Estado brasileiro e os povos indígenas. A cada contato com povos indígenas, novas formas de imposição se faziam presentes. A tutela extrapolava o campo teórico, convertia-se em atitudes e práticas políticas, sendo as “reservas indígenas” o melhor produto da dinâmica tutelar. Eram pequenas glebas de terra onde os indígenas eram assentados, obrigados a modificar seus padrões socioeconômicos, controlados e vigiados pela administração pública. A tutela foi conduzida pelo próprio Estado por meio dos órgãos indigenistas, que promoviam a intermediação entre indígenas e sociedade regional, especialmente no que tange à disputa por terras. (BRIGHENTI, 2015, p. 145-146).

Devido ao regime de Tutela, muitos Guarani Mbya saiam de suas tekoá, pois dentro das próprias aldeias os juruá (não indígenas) administradores das reservas, forçavam-nos a abandonar seus costumes, o mbya reko (modo de ser Guarani Mbya)… Isso fez com que muitos Guarani entrassem em crise, buscando viver em meios urbanos e rurais, e negando a identidade indígena, com medo das perseguições dos sistema de integração que existia, e muitas vezes ainda existe na mentalidade das pessoas. Existem também, aqueles que reencontram, em sua caminhada, guata porã (belo caminhar), pois mesmo distante da aldeia, continuou a busca da purificação que existe no mbya reko (modo de ser Guarani Mbya)…

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Para instituir a tutela indígena, o governo se valeu de várias leis, que consideravam os direitos indígenas na perspectiva de assimilação e ausência de autonomia. O amparo legal do regime tutelar se encontra desde o início do século XX, no Código Civil de 1916:

O regime tutelar estava amparado no Código Civil de 1916:

“Art. 6º São incapazes, relativamente a certos atos, ou à maneira de os exercer:

IV – Os Silvícolas.

Parágrafo único. Os silvícolas ficarão sujeitos ao regime tutelar, estabelecido em leis e regulamentos especiais, o qual cessará à medida que se forem adaptando à civilização do País.” (Esse código foi revogado e substituído pela Lei n. 10.406, de 10 de janeiro de 2002).

A Constituição Federal de 1988 deu fim ao regime tutelar. Foi a primeira Constituição na história do Brasil que reconheceu a organização social, os costumes, a língua, as crenças e as tradições indígenas (Art. 231), além de reconhecer os indígenas como parte legítima para ingressar em juízo (Art. 232), ou seja, podem se fazer representar, não necessitam mais da presença do agente do Estado. É como se tivessem atingido a maioridade. (BRIGHENTI, 2015, p. 146).

Assim, as legislações brasileiras têm desconsiderado as organizações próprias dos povos indígenas. Os Guarani Mbya da tekoá Yynn Moroti Whera sentem na pele o impacto destas pressões sob povos indígenas, como narra o karaí (liderança espiritual) Alcindo Wherá Tupã Moreira:

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Apenas com a Constituição de 1988, o regime de tutela teve seu fim oficial. Isto não significa que o governo não continue a negligenciar os direitos e a situação dos povos indígenas, de modo a se basear em estereótipos e preconceitos para julgar as prioridades referentes às questões de terra no país. Durante o regime militar brasileiro, na década de 1970, várias comunidades indígenas, como é o caso de aldeias Guarani, rebelaram-se contra os chefes dos postos indígenas nos aldeamentos, devido aos maus tratos, e às imposições dos funcionários e representantes do governo, aos povos indígenas, que eram impedidos de viver segundo sua cultura. Entretanto, algumas gerações de povos indígenas de boa parte das etnias que hoje vivem no Brasil, passaram pelos aldeamentos do regime de tutela, sofrendo as pressões das tentativas de assimilação, basicamente ao longo de todo o século XX, como é o caso de várias comunidades dos povos Guarani que vivem no Brasil…

Por quase um século o regime tutelar manteve a população indígena privada de se manifestar. Toda interlocução ocorria por meio dos agentes indigenistas, servidores do SPI e, a partir de 1967, da Funai. Eram proibidos inclusive de falar a língua materna e se manifestar em suas particularidades religiosas. As terras indígenas foram exploradas economicamente pelo Estado. No Centro-Sul do Brasil, o poder estatal mantinha um tripé de exploração das terras Kaingang: projetos agropastoris, arrendamento das terras indígenas para famílias camponesas e exploração da madeira nativa. A transformação em camponeses pobres era a meta traçada pelo Estado aos indígenas. (BRIGHENTI, 2015, p. 146-147).

Durante os anos 1980, os movimentos indígenas,que vinham lutando pelo fim da tutela,  e também pelo reconhecimento da autonomia, e dos direitos originários à terra. Mudar o quadro de violência dos aldeamentos, o modo com o governo e a sociedade encaravam os povos indígenas era um dos principais objetivos dos movimentos indígenas. Durante o momento de escrita da Constituição de 1988, os movimentos indígenas também participaram. Veja o relato do indígena Ailton Krenak, da etnia Krenak, durante a Assembleia Constituinte. Sua mensagem expressa toda a dor dos povos indígenas sofridas ao longo das políticas de extermínio: seja por meio das armas, ou pela pressão social para que os indígenas se integrassem à cultura não indígena, abandonando suas culturas…

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