Pauliciana viveu em diversas aldeias, buscando as condições necessárias para viver o Mbya reko (modo de ser Guarani Mbya). Ela, e até seus ancestrais, tiveram que enfrentar o descaso da sociedade e do governo brasileiro com o Mbya reko, que se esquivava (e muitas vezes continua se esquivando) de criar condições administrativas e jurídicas, para que os povos Guarani (e todos os povos indígenas do Brasil) pudessem viver segundo suas tradições. Desde 1680, o reino de Portugal reconheceu os direitos originários por terras dos povos indígenas, mas isso não significava que os juruá (não indígenas) fossem cumprir estas decisões. Para tomar as terras das aldeias onde viviam os indígenas, as sociedades não indígenas passaram a ter uma ideia bastante estreita e limitada do que significa ser indígena. Isso fez com que muitos povos indígenas migrassem para outras regiões, ou trabalhassem para os não indígenas e troca das terras que foram espoliadas. Também gerou muitos conflitos, ao longo de todo o território brasileiro, cujo tamanha variava constantemente. Durante o século XIX, as legislações começaram a revelar o interesse do Estado brasileiro em impossibilitar os povos indígenas a se manifestarem por si mesmos, alegando limitações de suas capacidades jurídicas, e se assumindo como controlador dos interesses indígenas, conforme explica o historiador Clóvis Brighenti:

A legislação indigenista nas primeiras décadas do Império (1822-1845) era pobre e estava pulverizada em várias instâncias legislativas, representando um retrocesso no reconhecimento dos direitos indígenas. Apesar dos apontamentos de José Bonifácio, patrono da Independência do Brasil, a Constituição de 1824 sequer mencionou os indígenas (Cunha, 1992a). No entanto, o pensamento de Bonifácio foi referência para as políticas indigenistas traçadas nos anos posteriores. Um dos marcos desse ajuste aconteceu com o Decreto n. 426, de 24 de julho de 1845, que contém o “regulamento ácerca das missões de catechese, e civilisação dos índios”. No entender de Eunice Paiva e Carmen Junqueira (1985), esse decreto foi a viga mestra da política indigenista brasileira até os dias de hoje. Esse decreto estabeleceu a “fixação das populações indígenas em determinados territórios”; impôs a “limitação da capacidade jurídica dos índios e consequente instituição da tutela governamental”; e instituiu o “paternalismo administrativo e burocratização da questão indígena”. (BRIGHENTI, 2015, p. 148-149).

A partir deste processo de pressão sob os povos indígenas, para a fixação territorial em forma de aldeamentos, o Estado decidia não ouvir estas sociedades. Assim, os povos Guarani, reconhecidos enquanto índios, teriam suas concepções territoriais e seu belo caminhar (O Belo Caminhar Guarani Mbya: Guata Porã – PÁGINA JÁ EXISTENTE) agredidos. A vivência do nhandereko (sistema cultural Guarani Mbya), passou a se desenrolar através da busca por viver em ambientes propícios para manter o mbya reko. Porém, até a Constituição de 1988, a forma tradicional de ocupação não era levada em consideração pelo Estado brasileiro, para a demarcação da extensão, e do local onde as tekoá iriam se estabelecer. Por isso, muitos Guarani Mbya, como os jovens da Tekoá Anhetenguá (Aldeia Verdadeira, situada em Porto Alegre – RS), sofrem as consequências destas políticas territoriais impostas pelos juruá (não indígenas) a tanto tempo…

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A tutela que o império brasileiro começava a estabelecer sob os povos indígenas, apesar de ser oficialmente suspensa com a Constituição de 1988, perdura até os dias atuais nas práticas do Estado. Isso significa que o governo e a sociedade não indígena, muitas vezes se recusam a ouvir as comunidades indígenas diretamente, buscando controlá-las, e responder pelos próprios indígenas sobre o que será melhor ou pior para eles. Assim, as terras que foram tomadas dos povos indígenas, eram cedidas em partes muito menores às comunidades indígenas, as quais o governo buscava controlar.

É de 1850 a principal lei do Império sobre o tema fundiário. Trata-se da Lei n. 601, de 18 de setembro de 1850 (conhecida como Lei de Terras), regulamentada pelo Decreto n. 1.318, de 30 de janeiro de 1854. Essa lei instituiu a propriedade privada e o comércio de terras. De acordo com João Mendes Junior (1912), a Lei de Terras reconheceu o direito indígena sobre os territórios ocupados, não necessitando de legitimação de posse, já que o título legítimo é o indigenato, referendando-se no Alvará de 1º de abril de 1680. (BRIGHENTI, 2015, p. 149).

A Lei de Terras, então, reconhecia o direito indígena sobre os territórios ocupados, através da tradição de ocupação e a história das sociedades indígenas, com as terras e nas terras que ocupam. Entretanto, os juruá (não indígenas) encaravam os indígenas a partir de estereótipos, e preconceitos. Assim, foi construída uma imagem do índio que vive nu, isolado, o que não corresponde à realidade de uma cultura, pois todas as sociedades estão em constante transformação de seus hábitos, e se relacionam com outros grupos, de forma direta ou indireta. Além do mais, a política de tutela do estado brasileiro, e a invasão das terras indígenas, impedia estas comunidades de viverem sem entrar em contato com os juruá… O professor Edson Kayapó faz uma reflexão sobre os absurdos, presentes nestas visões congeladas sobre os indígenas, comose fossem todos iguais, e vivessem como selvagens. Estas visões foram alimentadas pela própria literatura brasileira e não indígena, e por isso, Edson Kayapó também fala sobre a importância da literatura indígena:

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Apesar de cederem pequenas porções de terras para os povos indígenas, o governo possuía interesses nas terras ocupadas pelos povos indígenas, que ainda não haviam sido povoadas pelos juruá (não indígenas). Estes povos, então, passaram a viver sob constantes confrontos e tentativas de extermínio, tendo suas terras usurpadas por agentes e capangas (denominados de “bugreiros”), e posteriormente sofreram pressão para serem confinados em “aldeamentos”, espaços extremamente reduzidos em relação aos territórios que antes ocupavam. O objetivo do governo brasileiro com os aldeamentos, seria o de reduzir as terras ocupadas pelos indígenas, e liberar terras para as fazendas, através da tentativa de assimilar os indígenas e integrá-los à massa dos camponeses pobres, que trabalhariam nas fazendas, ou na aldeia. Mas estes projetos do governo encontraram resistência de vários povos indígenas, que continuaram vivendo sua cultura, ao decorrer do contato com os juruá

Durante o século XIX a mão de obra indígena já não despertava o interesse do governo imperial, mas a terra ocupada pelos indígenas, especialmente no Centro-Sul do Brasil, como os Kaingang e os Xokleng, passou a ser objeto extremamente cobiçado, tanto do ponto de vista estratégico, para ocupar e “proteger” a fronteira do Brasil contra os vizinhos de língua espanhola, como para a ampliação do espaço da pecuária. Após intensas incursões militares para dominar essas populações, foram criados os “aldeamentos”, espécie de confinamento indígena, liberando as terras para as fazendas. Com os Xokleng essa tentativa foi frustrada, esses indígenas recusaram o aldeamento e apenas na segunda década do século XX aceitaram dialogar amistosamente com a sociedade regional. No interior de São Paulo, os Kaingang impediram a invasão de suas terras até 1910. Já no final do século XIX e no início do século XX, o governo republicano criou as “reservas indígenas”, uma modalidade laica de controle. (BRIGHENTI, 2015, p. 145).

Vários grupos entre os povos Guarani que viviam no sul e sudeste do Brasil, também sofreram o processo de aldeamento…

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