Quando o raio atingiu a árvore, na Tekoá Koenju, a comunidade buscou meditar. Era preciso estar atento para o que Tupã quis dizer com aquela mensagem. Afinal, o raio poderia ter sido manifestado por um espírito bom ou mal, e mesmo que fosse bom, o raio, junto ao sonho de Karaí Tataendi, era um aviso. A comunidade precisaria se reaproximar do modo de ser guarani, pois estavam muito próximos das impurezas trazidas pelos juruá (não indígenas). Por isso, ao amanhecer, a Kunhã Karaí Pauliciana começou a fumar o Petyngua (cachimbo sagrado). Por ser anciã da aldeia, ela seria responsável por mediar a comunicação com os deuses, e com os Nhanderu Mirim. Por muitas vezes, os guarani sentem seu mundo ameaçado por impurezas, imperfeições que advém do não seguimento do Nhandereko, e da usurpação das condições para viver segundo sua cultura, provocado principalmente pelo contato (na maioria das vezes sem consentimento dos guarani) com os juruá. Para purificar a aldeia, meditar, e enviar sinais para se comunicar com Nhanderu e serem lembrados por ele, os guarani mbya fumam o petyngua (cachimbo sagrado). Através da fumaça, acontece a purificação e a cura de doenças, pois a fumaça, para os mbya, é sagrada, sendo um elo de ligação com as moradas dos deuses. A educação guarani é baseada no uso do petyngua, pois através do uso da fumaça, desde criança os guarani aprendem a meditar e buscar a purificação através da sabedoria da paciência e calma. Assim, mais velhos e professores educam as crianças para a utilização do petyngua, o que já era transmitido por seus antepassados.

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Pauliciana utilizou o Petyngua em companhia de seus parentes. Geralmente, o uso do Petyngua é uma prática coletiva, e vários guarani usam. Porém, somente a Kunhã Karaí e o Karaí podem utilizar para se comunicar com os deuses, e guiar os guarani para a terra sagrada. O petyngua é utilizado durante o cotidiano dos guarani mbya, durante o preparo dos alimentos, no trabalho com a roça, enquanto os mais velhos contam aos mais jovens mitos e histórias, propiciando o aprendizado. A Kunhã Karaí Pauliciana, junto ao Karaí, também utiliza o Petyngua na Opy, para meditar junto com a comunidade, e guia-los para estarem em harmonia com o bom caminhar. É na Opy que os guarani aprendem a realizar as atividades da aldeia, e a entender o mundo. Na foto abaixo, registrada por Vherá Poty e Danilo Christidis (2008), a fumaça que aparece significa a conexão com a morada de Nhanderu.

Fotografia: Fonte: Os guarani Mbyá, um livro de Vherá Poty e Danilo Christidis.(2008). (SILVA, 2015, p. 13).

O petynguá é utilizado para a proteção dos maus espíritos, principalmente pelas Kunhã Karaí e Karaí. Também é usado para a cura, e afastar os espectros das pessoas da aldeia que já morreram. Estes espectros, chamados de angue, surgem com o nascimento das pessoas, e ficam na terra após suas mortes, pois são a áurea terrena, que sofre influências positivas e negativas, assim como afetam os nhe’e e angue dos outros.

[…] Os Jurua (não indígenas) pensam que só tem um mundo. Mas não! Nós Mbya vimos aqui na Terra e, depois voltamos ao nosso lugar no alto, no céu, nas cidades dos Nhanderu. Era esse o objetivo dos nhanheramõi kuery (os nossos avós antigos). É muito importante sabermos que quando viemos aqui na Terra, lá de cima, Nhanderu não falou pra vivermos até este mundo acabar. […] Vocês estão perguntando por que os nhaneramõi kuery (os nossos avós antigos) não paravam em um lugar só, antes de chegarmos aqui. […] Antigamente, os nhaneramõi kuery não paravam em um só lugar porque eles procuravam terras boas para plantar. Eles ficavam somente o tempo certo. Quem guiava eles eram os nhe’ẽ. Por outro lado, com o tempo, o tekoa ficava sem proteção. Para se afastar dos maus espíritos, os nossos avós se mudavam mais para frente; eles não podiam voltar atrás. Assim, eles seguiam através dos cantos e com o petỹgua. Quando alguém falece na aldeia, fica o seu espírito (a sua sombra) aqui na Terra, e esses espíritos ficam nos incomodando nos sonhos. […]

Xeramõi Felix Karai Brizola – Karai Mirim

(Tekoa Ara Ovy, Maricá/RJ)

In: AFFONSO, Ana Maria Ramo y. LADEIRA, Maria Inês. (Orgs). Guata Porã/Belo Caminhar. São Paulo: Centro de Trabalho Indigenista, 2015. (Projeto pesquisadores Guarani no Processo de Transmissão de Saberes e Preservação do Patrimônio Cultural Guarani – Santa Catarina e Paraná/ Agosto de 2014 – Novembro de 2015), p. 35.

Além de utilizar o petyngua, dona Pauliciana também é responsável por produzir e ensinar a produção de cestarias. As kunhã karaí tem o importante papel de interpretar e ensinar o significado dos grafismos guarani, e através destes ensinamentos, conduzir os mais jovens a seguir os bons caminhos para ser um guarani ete’i (verdadeiro). Os guarani mbya pintam vários tipos de desenhos e símbolos, nos cestos e balaios confeccionados. São as pinturas feitas nas cestarias, que também são pintadas no corpo, que transmitem mensagens importantes, sobre revelações e saberes necessários para viver de acordo com o modo de vida guarani, de acordo com o seu amba (morada espiritual) e nhe’e (espírito protetor, revelado no nome de cada um).

Padrão cobra Jararaca (Mboi Para – Cobra Grande), foto tirada na casa de Seu Roberto). Esse grafismo é chamado de Vida Longa (Teko Puku). Um balaio feito com esse grafismo é oferecido para a pessoa com desejo que ela tenha uma vida longa, ou seja que ela vive por muito tempo ou muitos anos. (SILVA, 2015, p. 28).

 

Além da transmissão de saberes, as cestarias têm utilidades nas atividades da aldeia.

NOME: Timóteo de Oliveira

IDADE:53 anos

ONDE NASCEU: Aldeia Cantagalo- RS

ONDE MORA: Aldeia Morro da Palha

PROFISSÃO: Artesão

Assim como outros artesanatos que ainda são feitos tem sua importância, como as cestas – que antigamente faziam para usar no dia a dia, nas casas, para pegar peixes nos rios, guardar os alimentos, água. Essas cestas eram feitas para guardar água antigamente, assim, faziam uma cestinha e fechavam com a cera de abelhas por fora e por dentro. (GONÇALVES, 2015, p. 12 – 13).

Os cestos também eram utilizados nas roças, pelas mulheres:

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Os cestos podem ter diversos tamanhos, feitos para diferentes usos. Os artesanatos têm diversas histórias, relacionados às pessoas que os elaboraram e aos seus usos.  Uma das jovens guarani, que meditava e produzia cestarias com dona Pauliciana, elaborou pequenos cestos para guardar cachimbo, fumo, na Opy (Casa de Reza).

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Pauliciana também produz outras formas de artesanato. Existem tipos de artesanatos que são realizados pelos mais velhos da aldeia, como as cestarias em formato de peneira. A forma como as peneiras são confeccionadas fazem a diferença, devido aos usos específicos, na cultura guarani. Os materiais que compõe a peneira também possuem fins medicinais, e os mais velhos dominam estes saberes.

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As esculturas em madeiras em formas zoomórficas, assim como os grafismos das cestarias, também transmitem aprendizados importantes aos guarani.

Cada artesanato de madeira feito em forma de bichinhos para os guarani tem o seu valor, sua historia e sabedoria. Na cultura guarani, por exemplo, o tatu e a tartaruga possuem partes do corpo que são utilizados na medicina tradicional guarani. Por isso, os guarani, quando caçam ou pegam na armadilha um tatu, o levam para a aldeia e, na hora de cortar e limpar, tiram um pedacinho da carne com gordura para guardar. A banha do tatu é medicina, por isso é passada nas crianças a cada lua nova como um creme, uma pomada. Assim a criança cresce com corpo firme e forte mesmo que ela não tenha muita massa muscular – e assim, seus ossos se tornam duros. (GONÇALVES, 2015, p. 8).

As meditações conduzidas pela Kunhã Karaí e pelo Karaí na Opy, são geralmente realizadas através de músicas. As músicas guarani são formas de ritmar as palavras, que para os guarani, são geradas pelos deuses. Assim, as melodias são formas de serem ouvidos por Nhanderu. A Kunhã Karaí Pauliciana, ao buscar meditar para compreender o significado do raio que atingiu a Tekoá Koenju, entoou canções com o coral da aldeia, para tentar compreender, e também para redimir a comunidade dos desvios dos caminhos do Nhandereko (modo de ser guarani). Assim, durante as rezas entoadas através de canções, e das músicas cantadas no coral, são utilizados instrumentos musicais de sopro, corda, e percussão, que são muitas vezes produzidos artesanalmente. É o caso do Mbaraka, chocalho guarani feito de cabaça.

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Os colares guarani mbya são usados para a proteção dos maus espíritos, e dos angue (espíritos terrenos que cada pessoa possuem) que podem influenciar negativamente os outros, devido a coisas ruins que as pessoas fazem. Por isso dona Pauliciana realizou o colar com a madeira da árvore atingida pelo raio, e o deu para seu neto, para que ele desse ao seu filho. As crianças mais novas são mais suscetíveis a serem afetadas por influências negativas…

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