A caminhada guarani é histórica. Ela está vinculada a religiosidade, e consiste na busca pela morada ssagrada que os Nhanderu Mirim (ancestrais guarani mbya) alcançaram. Segundos as histórias, antes dos não indígenas chegarem aos territórios guarani, os ancestrais guarani mbya caminhavam atrás de Nhanderu, trilhando caminhos sagrados. Este caminho era direcionado ao mar, que os Nhanderu Mirim cruzavam, para viverem próximos aos Nhanderú (deuses). Eles conseguiam estas proezas porque meditavam,rezavam e entoavam cânticos o dia inteiro, dedicando-se a ouvir Nhanderu, através das lideranças espirituais. Nos lugares onde paravam para descansar, construíam as Tava, que eram suas moradas provisórias, antes de alcançarem as moradas sagradas. Por isso, os guarani mbya seguem as Tava, que foram deixadas para trás pelos Nhanderú Mirim, pois elas indicam a caminhada para chegar às moradas sagradas. Porém, desde a chegada dos juruá (não indígenas), os povos guarani mbya nunca mais conseguiram alcançar as moradas sagradas, devido à interferência juruá ao mbya reko (modo de ser guarani mbya)…
Tava, os sinais dos Nhanderu Mirim
Alguns que vieram de lá de Yvy Mbyte, do centro do mundo, a gente chama em português Ninho Kesu. Ele é de depois que chegaram os portugueses, os franceses e os espanhóis. Candelaria é como chamamos a companheira do Ninho Kesu. Eles fizeram tudo para nós que ficamos aqui, para todas as pessoas; eles fizeram sinais para a gente lembrar. Então, temos que lembrar sempre o trabalho que eles fizeram aqui no mundo, porque eles vieram lá de YvyMbyte. Tudo isso é para a gente saber, para lembrarmos, para não esquecermos. Então, já deixou tudinho pra nós.
Aqueles que vieram lá de Yvy Mbyte (Paraguai), o Ninho Kesu, que é um Nhanderu Mirim, se encontraram em San Ignácio, com os Jesuítas. Ali foi o primeiro lugar onde eles se encontraram. Os padres jesuítas contaram uma coisa, os Nhanderu Mirim outra coisa diferente. Eles não se entenderam. Os padres jesuítas contaram uma história e os Nhanderu Mirim queriam contar outra. E assim vai! Daí já começou, até agora, faz muito tempo, mas nunca vai dar certo, nunca vão se entender. […] O encontro com os brancos bloqueou (joko) a caminhada. Desde aquela época, não houve mais ninguém como eles. Desde aquela época, os Guarani não atravessaram mais ao outro lado do mar. Ficou muito difícil de acontecer depois do encontro com os Padres Jesuítas.
Só através de Nhanderu que não seria difícil; depende da pessoa. Vai acontecer de novo, mas tem que ser bem forte. Algumas pessoas abrem o seu coração para Nhanderu, então, aquele que tem a fé, que confia, que pede para Nhanderu, pode conseguir; pra ele, não é difícil. Se não alcançar, então, é difícil conseguir de novo. Para nós é difícil, mas para Nhanderu mesmo não é difícil. Se aquele que precisa pedir verdadeiramente, com certeza, absolutamente, para Nhanderu, essa pessoa vai alcançar de novo. Mas para nós, está difícil.
Xeramõi João Silva – Vera Mirim
(Tekoa Xapukai/Brakui, Angra dos Reis/RJ)
In: AFFONSO, Ana Maria Ramo y. LADEIRA, Maria Inês. (Orgs). Guata Porã/Belo Caminhar. São Paulo: Centro de Trabalho Indigenista, 2015. (Projeto pesquisadores Guarani no Processo de Transmissão de Saberes e Preservação do Patrimônio Cultural Guarani – Santa Catarina e Paraná/ Agosto de 2014 – Novembro de 2015), p. 40.
Os Nhanderu Mirim vieram do centro do mundo, Yvy Mbyte, que fica onde é o Paraguai. Foi pela caminhada dos Nhanderu Mirim, que eles iam construindo as Tava, grandes casas de pedra. Entre estas Tava, estão as reduções missioneiras, construídas juntamente com os padres jesuítas: mas para os ancestrais guarani, tratava-se da caminhada em busca de Nhanderu.
Muitos xeramói (avôs, anciões, mais velhos) e xejary (avós, anciãs, mais velhas) costumam contar histórias sobre as caminhadas realizadas pelos Nhanderú Mirim, explicando aonde foram sendo construídas as Tava, a situação histórica da caminhada guarani, e a tomada das terras em que viviam, pelos juruá…
A maioria daqueles que estavam em São Miguel das Missões era Nhanderu Mirim. Saíram 150 pessoas de lá. Saíram lá em Itanhaém e, dali, foram lá para Porto Seguro. 150 pessoas. Eram Guarani, Nhanderu Mirim mesmo. Até aceitaram os brancos quando chegaram ali. Aceitaram a ajuda até dos espanhóis e também dos franceses. Nhanderu Mirim não estava proibindo: “podem carregar, podem levar pedra”. Eles estavam construindo as Tava. [Os brancos] Trabalham por interesse de riqueza, os Nhanderu Mirim estão sabendo. Mas pra eles não vale, porque eles vão embora, não é pra morar sempre. É só para os brancos verem, depois de muito tempo, como é o trabalho. E também onde que viveram os Guarani primeiramente, antes de chegarem os brancos. Então, eles deixaram marcas para conhecer onde era o lugar em que viveu o Guarani antigamente. Era só pra isso a marcação que eles deixaram. Mas os brancos não estavam sabendo porque é que eles fizeram em todos os lugares, em todos os Estados. Em Curitiba (Paraná), onde é agora a cidade, tinha muitas casas Guarani quando os brancos chegaram. Em Paranaguá (Paraná), Itanhaém (São Paulo), na cidade de São Paulo, capital, tinha muitos Guarani. Em Vitória, Anchieta (Espírito Santo), fizeram um restaurante enorme pra que não se saiba de nada, pra cortar todos os direitos dos Guarani. Lá em Minas Gerais, também tinha muitas Tava Mirim, e lá em Porto Seguro. E também no Peru tinha muitas Tava feitas pelos Nhanderu Mirim. Só que lá já eram outros índios, mas foram os Guarani que orientaram as outras nações fazer essas Tava.
[…] Os Jesuítas ficaram 150 anos, e queriam lograr a todos os Guarani, com a reza deles e a língua deles. Só que não conseguiam. Queriam integrar a todos e não conseguiram; tentaram durante 150 anos. Vieram outros tipos de padres, padres alemães e disseram: “agora nós queremos que vocês obedeçam. Nós queremos que vocês rezem igual a nós. Porque a nossa reza é que vale. A reza do Guarani não vale porque não é pra Nhanderu que se reza”. Mas os Guarani falaram: “não, nós não vamos entregar o orereko (nosso sistema). Nós não vamos entregar. Vamos continuar com a nossa cultura, com a nossa reza, com a nossa língua”. Dali começou a briga.
Começaram em Catarata das Missões e vieram até São Miguel das Missões. Chamaram todos para ajudar, eram muito ricos. Os Nhanderu Mirim também tinham muitas riquezas naquela época. Miguel era o mais rico de todos. Aqueles que vieram conheciam os espanhóis, que disseram: “nós vamos ajudar, vamos trazer ferro lá de Buenos Aires”. E eles trouxeram um ferro muito grande lá de Buenos Aires. Mandaram trazer de lá, os espanhóis, para ajudar os Guarani aqui a construir a casa. Miguel falou: “pode trazer. Se quer trazer, traz”. E colocaram todo o ferro que trouxeram lá de Buenos Aires para ajudar a levantar a casa. Eles queriam lograr os Guarani, ficar com toda a riqueza. Mas o interesse de Miguel não era ficar ali; ele estava fazendo a Tava só pra mostrar. Os espanhóis queriam ajudar e diziam: “nós vamos ajudar”. E Miguel respondia: “tudo bem, trabalha aí”. Os franceses trabalhavam, os portugueses trabalhavam, os espanhóis trabalhavam, mas só por interesse, porque queriam lograr e matar a todos. Então, não é que os Guarani aprenderam a trabalhar junto com os espanhóis, os franceses e os portugueses nas Tava. Eles vieram dizendo que queriam ajudar, e o Guarani deixou, não proibiu pra eles.
Miguel tinha muitos que o ajudavam. Antes de chegarem os brancos, apareceu um dia um rapazinho. Acho que foram os Nhanderu mesmo que mandaram aquele rapaz, que tinha uns dez ou doze anos. Aquele era Sepe Tiaraju. Já veio para ajudar mesmo, apareceu de repente. Ele era o líder dos índios bravos. Ele que mandava, era o xondaro ruvixa – tipo um tenente. Ele mandava naquelas pessoas. Ele trabalhava através da palavra de Miguel. Sepe Tiaraju era o responsável pelos índios bravos. Miguel era um Nhanderu Mirim, ele não ia ficar, ele ia atravessar para o outro lado do mar. Agora ele está lá.
Lá tinha muitos cavalos, tinha muito gado. Umas 13 mil cabeças de gado. Tinha somente umas 1600 pessoas, entre Guarani e outros índios. Mataram muitos. Uns 150 saíram de lá. O resto mataram todos. E ficaram com o gado. Por isso que agora tem muito fazendeiro lá. No começo aquele gado era do Guarani mesmo, eles que criaram. Foi assim que aconteceu primeiramente.
[…] Em Catarata Misiones, lá na Argentina, tinha muitas casas, várias aldeias. De lá, eles visitavam sempre as Tava de São Miguel. Os xondaro iam, pra lá e pra cá. Eles se visitam sempre, e se ajudavam, levavam plantação pra plantar aipim, banana, cana, essas coisas. Faziam plantação e trocavam, levavam o que os outros não tinham e traziam outros tipos pra plantar. Também, naquela época, tinha outra aldeia em [Caiguate], no Rio Grande do Sul. Em São Nicolau tinha outra aldeia; em São Lourenço do Sul tinha outra aldeia; em Pelotas tinha outra aldeia; na capital [Porto Alegre], também tinha outra aldeia; Bagé tinha outra aldeia; Livramento tinha outra aldeia. Eles sempre estavam em comunicação; não tinham telefone, mas eles avisavam que estavam indo visitar, que estavam sabendo que precisavam ir lá. Naquela época era assim: os pajés estavam em contato entre eles: “vamos lá. Eles estão precisando”. Assim que vai continuando.
Naquela época, em Paranaguá tinha outra aldeia. Os Kaiowa tinham outra aldeia. Tinha muitas aldeias lá em São Paulo e às vezes eles vinham lá de São Paulo. Mas, naquela época, não é como agora. Eles tinham o apyka (veículo dos Nhanderu) pra caminhar. Nhanderu ajudava eles, então, não demoravam nem dez minutos para chegar aqui desde São Paulo. Vai e, na mesma hora, chega; igual que Nhanderu. Dessa forma, eles caminhavam naquela época. Então, vamos dizer que é assim: Nhanderu faz Tape Mirim, assim, uma fumacinha, como o brilho do Sol, aí, na hora que ele pisa ali, ele vai. De lá, de Porto Seguro, pra visitar ali, em São Miguel das Missões, não leva nem meia hora pra chegar. De lá, de São Miguel das Missões, vai lá pra Porto Seguro, e não leva nem uma hora pra chegar lá. Era assim antigamente, porque tudo isso eram os Nhanderu que faziam pra eles. Mas agora já não é assim; agora nós sofremos, não é como antigamente.
[…] Eu estudo. Cada dia, de noite, eu falo sobre essas coisas com Nhanderu. Em que lugar tinha Guarani antigamente? Onde viviam outros índios? Ali, na beira do Rio Tijucas, viviam outras nações. Em um primeiro momento, na Tijuca também havia Guarani. Mas pra lá havia também aqueles que nós chamávamos de jekupe, aqueles ava (homens) mais bravos. Mas isso é antigo, não é de agora. Ali, em Itapema, também havia outros índios, não eram Guarani. Camboriu já era lugar do Guarani também. Imbituba? Lugar de Guarani, também. Garopaba? Lugar de Guarani também. Praia do Sonho? Lugar de Guarani; Pinheira também. Enseada do Brito? Lugar de Guarani; antigamente, já era lugar de Guarani. Universidade Federal? Lugar de Guarani. Primeiramente, fizeram a casinha lá os Guarani. Por isso, antes de 1300 já moravam ali os Guarani. Depois, chegaram os brancos, puseram na escrita, fizeram muitos erros. Mas onde enterraram aqueles que fizeram balaios e outras coisas, arco e flecha, embiras, todas as coisas que sobravam e colocavam dentro da terra em várias partes? Pode ser que tenham tirado alguma parte, mas tem ainda pra tirar. Os brancos não deixam, tiram tudo pra ver, colocam tudo dentro de suas casas, de seus Museus.
Quantas mil pessoas estavam morando lá na Ilha de Florianópolis? Em 1845 chegou Floriano Peixoto. Ele matava todos. Naquela época, os mais bravos eram os Carijós. Brigaram até o fim e não se entregavam. Não entregavam, e morriam. Nossos antepassados Guarani morreram sem entregar a terra. Eles não tinham armas como os brancos, mas eles não entregavam a terra. Por isso que hoje em dia nós temos direito de lutar, porque os nossos parentes antigos não entregaram a terra aos brancos. Eles não entregaram, os brancos tomaram deles porque tinham armas de fogo e matavam a todos. Mas eles não entregavam essa terra. […] Mesmo assim, os brancos desmataram tudo. Por isso, nós temos direito de lutar, porque nós não entregamos a terra para os brancos. Se os Guarani tivessem entregado diretamente, agora não tinham mais direito, nem existiria mais Guarani, somente português. Mas nós, Guarani, estamos até agora, porque nós não entregamos mesmo. É assim que nós estamos sabendo; eu não estou mentindo. Mataram quatro mil pessoas na ilha de Florianópolis. Será que os Guarani não existiam primeiramente [antes da chegada dos brancos]? Como falou naquela época o Governador do Estado, ele estava comandando e disse:“mas aqui, antigamente, nunca existiram os Guarani; aqui não é lugar do Guarani”. Mas ele não sabe, porque ele é governo e não sabe nada de como era antigamente. Será que morreram quatro mil na Ilha de Florianópolis e não anotaram nada? Será que não existiram, primeiramente, os Guarani?
Xeramõi Timoteo Oliveira – Karai Tataendy
(Tekoa Itanhaen, Biguaçu/SC)
In: AFFONSO, Ana Maria Ramo y. LADEIRA, Maria Inês. (Orgs). Guata Porã/Belo Caminhar. São Paulo: Centro de Trabalho Indigenista, 2015. (Projeto pesquisadores Guarani no Processo de Transmissão de Saberes e Preservação do Patrimônio Cultural Guarani – Santa Catarina e Paraná/ Agosto de 2014 – Novembro de 2015), p. 40-42.
Assim, as Tava são um registro do trabalho Nhanderu Mirim, os ancestrais guarani, quando passaram por este mundo. Quando eles cruzaram os mares, atingiram a morada sagrada com seus corpos, e com seus nhe’e (espíritos protetores): conseguiram realizar a caminhada sagrada dos povos guarani, acompanhando seus espíritos protetores até onde moram os deuses…
Antigamente, os mais velhos caminhavam, iam de um lugar pra outro, mas eles não caminhavam só por querer. Era Nhanderu que iluminava o caminho, que dizia para fazer a viagem. Onde tinha ruínas, as Tava, eram os Nhanderu Mirim que trabalhavam ali. Quando os Guarani andavam, eles paravam onde Nhanderu dizia pra eles pararem. A ruína foi feita através da história. Nhanderu iluminava o caminho pra seguirem a viagem, porque ele queria que chegassem onde ele estava com o corpo e com o nhe’e. Os Karai rezavam e, através dessa reza, Nhanderu iluminava o caminho, determinando por onde eles iam andar, e onde eles iam descansar. Vocês estão vendo aqui, nesta aldeia, como é a reza. Antigamente, tinha muita reza pra poder alcançar Yvy Marã ey.
Xeramõi Augustinho da Silva – Karai Tataendy Oka
(Tekoa Guyra’i tapu, Parati/RJ)
In: AFFONSO, Ana Maria Ramo y. LADEIRA, Maria Inês. (Orgs). Guata Porã/Belo Caminhar. São Paulo: Centro de Trabalho Indigenista, 2015. (Projeto pesquisadores Guarani no Processo de Transmissão de Saberes e Preservação do Patrimônio Cultural Guarani – Santa Catarina e Paraná/ Agosto de 2014 – Novembro de 2015), p. 34.